Podcast Economistas: a história do salário mínimo no Brasil
Criado na década de 1930 e implementado em 1940, valor é ferramenta importante de regulação do mercado de trabalho e proteção social. Professor José Dari Krein (Unicamp) falou sobre as origens, particularidades e variação do valor real ao longo do tempo
Está no ar mais uma edição do podcast Economistas, e o episódio desta semana é parte da campanha Memórias e Futuro da Economia Brasileira, que conta com a parceria do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-Unicamp), criada para estimular o conhecimento da nossa história econômica e discutir o futuro que queremos criar. O tema da vez é o salário mínimo, criado no Brasil na década de 1930 e implementado no ano de 1940. O episódio pode ser escutado na sua plataforma favorita ou no player abaixo.
Origens do salário mínimo
A Austrália, a Nova Zelândia e o Reino Unido foram países pioneiros em adotar leis referentes ao salário mínimo, no início do século passado. A partir da década de 1920, depois da fundação da Organização Internacional do Trabalho, o debate sobre o assunto começou a ganhar mais força no mundo. O primeiro país latino-americano a instituir uma política semelhante foi o México, em 1917, seguido no ano seguinte pela Argentina.
“No caso brasileiro, o que é interessante, por um lado, é que a política de salário mínimo tinha como elemento estruturante a ideia da proteção dos trabalhadores que estavam vinculados ao novo movimento econômico da indústria e comércio”, explica o professor José Dari Krein, doutor em economia social e do trabalho pela Universidade Estadual de Campinas. “Ele vem a partir de uma concepção de Getúlio Vargas e sua equipe acerca da necessidade de proteção aos trabalhadores, e também da necessidade de mudar a noção do trabalho na sociedade brasileira”, complementa, em referência ao histórico de escravidão no País.
“Por outro lado, era fundamental não permitir que a sociedade explicitasse fortemente o conflito, como ocorreu em todos os países em que o processo de industrialização se desenvolveu. Nesse sentido, tinha um objetivo claro de estabelecer um patamar de direitos, uma ordem social em que o Estado garantia a não explicitação do conflito”, argumenta Krein. “Por isso se institui um sistema de legislação extremamente avançada para a época, mas também o sistema de controle da organização sindical. E o salário mínimo também possibilitaria que as pessoas tivessem acesso ao consumo, dinamizando a economia, um pilar básico do movimento de industrialização”.
A criação do salário mínimo no Brasil incluiu a constituição de comissões para pesquisar qual seria a cesta de consumo necessária para que as famílias pudessem se alimentar, vestir, morar e ter higiene e transporte. Ao mesmo tempo, foram observados os salários pagos nos setores mais desenvolvidos da indústria em cada região do país. Desta maneira, foram adotados nada menos que 14 valores diferentes de salário mínimo nas várias regiões do País, sendo que o maior deles representava mais que o dobro do menor. Isso porque nos centros urbanos mais complexos o custo de vida era muito maior do que em outras regiões do país.
“É bom lembrar duas questões para poder entender melhor essa política. Os dados de inflação, atividade econômica e emprego eram ainda bastante preliminares. Não havia estatísticas consolidadas para aferir com regularidade a situação econômica e social de cada região”, explica Krein. “Em segundo lugar, nesse momento o Brasil não tinha um mercado nacional unificado de consumo. Ele era dado muito regionalmente e tinha variações. Hoje os produtos industrializados têm um custo mais homogêneo entre as regiões do país. O que varia é o valor do trabalho pago em cada região, ou o transporte”.
“Neste momento, a política de salário mínimo foi feita de forma bastante consistente. Exigia um esforço administrativo por parte do Estado, mas tem a ver com a lógica de buscar não só desenvolver o Brasil, mas estabelecer um patamar básico de proteção às pessoas”, prossegue o professor. “Tanto que as proteções sociais eram seletivas, não eram para todos os trabalhadores, mas para aqueles localizados dentro do processo de industrialização brasileiro, ou seja, da indústria e do comércio”.
Reajustes do salário mínimo
Implementado em 1940, o salário mínimo não tinha um reajuste regular. O primeiro reajuste veio apenas em janeiro de 1943 (de 240 para 300 cruzeiros). Em dezembro do mesmo ano ele foi aumentado para 380 cruzeiros, mas o reajuste seguinte ocorreu apenas em 1952 – e neste período o salário mínimo perdeu cerca de 60% do seu poder de compra. Naquele ano ele foi aumentado de 380 para 1.200 cruzeiros e este valor seria dobrado em 1954.
“O salário mínimo foi criado a partir de um estudo do custo de vida das diferentes regiões do País, a partir de uma Comissão de Salário Mínimo, estabelecendo como parâmetro o que seria uma cesta de consumo necessário para as pessoas terem uma vida digna e atenderem suas necessidades básicas”, explica Krein. “Seu intuito era claramente proporcionar uma elevação dos salários médios na economia brasileira e, portanto, a segunda referência era o salário médio do setor industrial”.
Na década de 1950 houve vários reajustes acima da inflação. “Era algo dado muito mais por uma certa concepção política dentro do projeto de desenvolvimento nacional. Os reajustes sempre foram muito acima da inflação neste período”, pontua o professor. “Depois, nos anos da ditadura militar, foi estabelecida uma política de salário mínimo com objetivo de conter a inflação. Está dentro de uma lógica econômica de que o reajuste dos salários é um dos causadores da inflação existente no País. Então houve um forte arrocho”.
Em 1940, quando foi instituído, o valor do salário mínimo era de 240 mil réis. De acordo com cálculos do Dieese, este valor corresponderia, em junho de 2024, a pouco mais de R$ 2.500. O momento em que ocorreu o valor real mais alto foi na segunda metade da década de 1950, já sob o governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Na ocasião, houve um aumento de 2.400 para 3.800 cruzeiros – um montante que corresponderia, em valores de junho de 2024, a quase R$ 3.200.
Declínio do valor real
Entre as décadas de 1960 e 1980 o Brasil viveu períodos de inflação alta. Os primeiros governos militares foram caracterizados como um período de arrocho salarial. Embora houvesse reajustes anuais, o poder de compra diminuía, e em 1969 o valor do salário mínimo era de 156 cruzeiros novos, o que corresponderia, em valores de junho de 2024, a, a pouco mais de R$ 1.600, de acordo com números do Dieese.
Após relativa estabilidade no valor real durante os anos 70, os reajustes passaram a ocorrer duas vezes ao ano entre 1979 e 1985, um momento em que a inflação se via cada vez mais acelerada no País. Vale destacar que, quando falamos em salário mínimo ao longo de sua história, tomamos como referência o maior valor vigente no brasil – porque havia vários. Somente em 1984 ocorreu uma unificação dos valores, num contexto em que o valor real do salário mínimo das regiões de renda mais alta havia caído fortemente. Além disso, o País estava bem mais integrado do que na década de 1940, quando ele foi instituído.
“Durante o período da ditadura militar, o poder de compra do salário mínimo em São Paulo caiu 48%, enquanto no Nordeste subiu 2,3%. O processo de unificação se deu no movimento de depreciação. Não foi uma unificação levantando os salários das regiões mais empobrecidas”, destacou Krein. “Prevaleceu uma política em que a determinação do salário mínimo tinha como objetivo a possibilidade de pagamento dos setores com menor produtividade e dos entes federativos com menor capacidade arrecadatória”.
“A unificação faz todo o sentido, porque caminha no sentido de uma universalização de direitos iguais para todas as pessoas que trabalham em território nacional”, observa o professor. “Isso desestimula a migração dos trabalhadores para territórios com maiores salários e das empresas para aproveitar os custos mais baixos em outras regiões”.
A hiperinflação nos governos Sarney, Collor e Itamar fez com que os reajustes fossem cada vez mais frequentes, mas o valor real do salário mínimo era cada vez menor, até atingir o menor valor histórico em 1995, quando foi fixado em R$ 70 – o que corresponderia, em valores atualizados até julho de 2024, a menos de R$ 600.
Política de reajustes reais
Entre 2004 e 2019 houve uma política de reajustes reais do salário mínimo, com ganhos acima da inflação – algo que vem sendo retomado pelo novo governo. Quando o debate foi colocado, no começo dos anos 2000, houve uma corrente argumentando que os aumentos reais do salário mínimo poderiam gerar efeitos como inflação, desemprego e informalidade. Krein vê mais resultados positivos do que negativos.
“A política culminou em forte crescimento da formalização dos contratos de trabalho e uma inflação estabilizada em torno de 5% ao ano. O salário mínimo não é só custo, ele também tem seu efeito multiplicador sobre a economia”, citou o professor. “Repassar dinheiro para os setores mais empobrecidos, como Kalecki chama a atenção, significa consumo, porque eles utilizam o salário mínimo para prover os bens que são super importantes para a sua própria sobrevivência. A política de valorização tem um efeito extremamente positivo, porque reduziu as desigualdades salariais no período”.
Krein também observa o fato de que a política tem efeitos distintos dependendo dos contextos econômicos. “Na teoria econômica clássica, ela não poderia ser adotada. Mas a história mostra que ela teve mais efeitos positivos do que negativos no contexto atual”, comenta. “Talvez ela seja um dos fatores que ajudam a explicar o crescimento um pouco acima daquilo do que previam os economistas, porque injetou recursos para as populações mais empobrecidas e aumentou seu poder de compra. Se analisarmos o período anterior, houve melhora na formalização, na estrutura do mercado de trabalho e também nas contas da Previdência, porque a arrecadação entre os assalariados aumentou fortemente”.
Salário mínimo necessário
Desde 1959 o Dieese calcula o salário mínimo necessário para que uma família possa atender suas necessidades básicas de habitação, saúde, educação, vestuário, alimentação, higiene, transporte, lazer e previdência. O cálculo é feito com base na interpretação das necessidades estabelecidas na Lei 185/1936 e na Constituição de 1937 como sendo os objetivos do salário mínimo. Em junho de 2024 o salário mínimo era de R$ 1.412, enquanto o valor calculado como o mínimo necessário foi de R$ 6.995,44, ou seja, quase cinco vezes mais.
“O cálculo do Dieese mostra como o salário mínimo brasileiro ainda é extremamente baixo. É verdade que o cálculo é pensado para uma família de quatro pessoas e, por isso, os custos de educação têm um impacto maior”, explica o professor. “A importância dele é mostrar o que seria o salário necessário para atender as necessidades estabelecidas na lei. Pode ser uma base de referência para as políticas públicas. Não é um valor que possa ser instituído no curto prazo, depende da dinâmica econômica e de termos crescimento sistemático. Mas também é preciso ter um movimento de inclusão social”.
Vinculação de benefícios previdenciários
Desde a promulgação da Constituição de 1988, vários benefícios previdenciários estão atrelados ao valor do salário mínimo. Nos últimos meses, enquanto se discutiam medidas de contenção de gastos para cumprir o novo arcabouço fiscal, uma possibilidade ventilada foi a de desvincular os benefícios previdenciários.
“A vinculação foi e continua sendo um importante colchão amortecedor do tecido social brasileiro. Nos momentos de crise, sem a existência de um mínimo previdenciário, muitas das famílias teriam dificuldade de sobreviver, dificuldade inclusive para comer”, argumenta Krein. “Poderia acontecer, como no começo dos anos 80, um processo de comoção social, de saques. Então esta política tem um efeito de amortecer os conflitos do tecido social brasileiro”.