Artigo – O caráter de gênero na reforma da previdência
Flávia Vinhaes – Economista doutora/UFRJ, professora da Universidade Candido Mendes e Vice-presidente do Corecon-RJ.
Clician Oliveira – Economista doutora/UFF, Conselheira Suplente do Corecon-RJ.
É importante que se inicie este artigo denunciando o tom alarmista que se instaurou na sociedade, com o óbvio intuito de legitimar a reforma da previdência, apresentada ao Congresso através de uma Proposta de Emenda Constitucional nº 6/2019 em 20 de fevereiro. Com isso não se quer dizer que algumas medidas paramétricas não pudessem ser adotadas como forma de melhorar o caráter distributivo e assegurar os direitos relativos à saúde, previdência e assistência social, universal, garantidos pela Constituição de 88. Entretanto, a ruptura com um modelo de repartição, intergeracional, mais solidário, com o nítido objetivo de garantir maior apropriação da riqueza nacional pelo sistema financeiro, não pode vir fundamentada em falsos diagnósticos de “privilégios” e de “insuficientes” recursos que garantam o modelo atual.
O objetivo deste ensaio não é criticar todas as medidas da proposta, e sim analisar até que ponto esta reforma é retrógrada particularmente às poucas conquistas das mulheres brasileiras, além de sugerir algumas alternativas possíveis ao aumento da arrecadação num cenário futuro de queda da população em idade ativa, portanto, da razão de dependência, que passem pela transição do papel das mulheres no mercado de trabalho, mas que também apontem o fundamental papel do poder público no estímulo a estas mudanças.
No último trimestre de 2018, segundo dados da PNAD-C/IBGE, 52% das pessoas em idade de trabalhar, eram mulheres. Entre os ocupados, elas representavam 45% e entre os desocupados, 52%. Do total de pessoas com idade de trabalhar, mas sem ocupação ou sem pressionar o mercado de trabalho por uma vaga, 65% eram mulheres. Estes números apontam um contingente expressivo de mulheres que se encontrava fora da força de trabalho. Dentre as que estavam ocupadas na produção econômica, a média de horas semanais trabalhadas era inferior à dos homens, 43 horas para eles e 37 horas para elas. E o rendimento médio habitualmente recebido pelas mulheres no mesmo período compreendia 78% da renda masculina.
Essa condição mais precária dos vínculos da mulher no mercado de trabalho – que revela a menor participação na força de trabalho, menor rendimento e menor jornada de trabalho remunerado, maior taxa de desocupação e de participação no contingente fora da força de trabalho – se reflete nos números do sistema de assistência social brasileiro. Segundo os dados da Previdência Social de 2017 (AEPS2017[1]), os benefícios do sexo masculino representaram 50% da quantidade e 57% do valor total, correspondendo a um valor médio dos benefícios deste 31,4% maior do que o feminino, respectivamente R$ 1.516,29 e R$ 1.153,83.
Historicamente, as convenções de gênero da nossa sociedade fazem recair sobre as mulheres a responsabilidade pelas tarefas domésticas e de cuidados de pessoas (crianças e idosos). Essa responsabilização tira o tempo das mulheres, as exclui dos espaços públicos, dificulta-lhes o acesso ao emprego e, quando empregadas, à valorização profissional.[2] Estas convenções reservam às mulheres uma carga relativa maior de trabalhos não remunerados ligados à reprodução e de menor remuneração dos trabalhos relativos à esfera da produção social (ligados ao mercado de trabalho e às atividades econômicas). Em 2017, enquanto os homens dedicavam, em média, menos de 11 horas da semana às atividades de cuidados e afazeres, as mulheres dedicavam em torno de 21 horas (PNAD-C)[3].
Com o envelhecimento da população, tal sobrecarga continuará a ser delegada às mulheres, acumulando as atividades laborais – que se estenderão à idade avançada (uma vez que a reforma eleva a idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres de maneira desigual) – e os cuidados da família, principalmente de idosos que terão maior sobrevida. Ressalta-se que a maior expectativa de vida das pessoas não significa necessariamente que serão ativas para fins econômicos por mais tempo, pois podem ter reduzidas suas capacidades de adaptação frente a sobrecargas funcionais, na mesma idade.
Nesse particular, todas as propostas redutoras dos benefícios previdenciários ou sociais, como os Benefícios de Prestação Continuada (BPC), principalmente por idade ou ainda pela adoção do sistema de capitalização, ou qualquer outras propostas dificultadoras do acesso a esses benefícios, não buscam uma solução de garantia de dignidade ao idoso, comprometendo sua autonomia financeira.
Vale sublinhar que o sistema de seguridade social brasileiro, a partir da Constituição de 88, no artigo 194, alcançou a erradicação da pobreza extrema entre os idosos e, em alguns casos, este recurso lhes permite ajudar vários membros da família e do domicílio pela garantia do BPC. Trata-se de uma política redistributiva de renda buscando reduzir a desigualdade social ao mitigar a pobreza extrema e ao prover assistência àquele com severa incapacidade de ingresso no mercado de trabalho, por isso deve ser coberto por outras fontes de financiamento conforme previsto no art. 195 CF/88. Conclui-se que ao invés do envelhecimento da população ter seus custos partilhados socialmente, recairá sobre as mulheres demonstrando seu caráter de classe e de gênero.
Não por acaso o maior contingente de pessoas na inatividade é do sexo feminino e também não é por comodismo que mulheres trabalham menos horas em atividades econômicas. Dados da PNAD-C referentes a 2017 apontam que 37% das mulheres, no Brasil, cuidavam de algum morador do domicílio ou parente morador de outro domicílio. A maior parte destes cuidados ainda se direcionava às crianças e aos adolescentes, entretanto é possível que a transição demográfica traga mudanças neste comportamento.
É fundamental sublinhar que se apontem outras fontes de financiamento da Seguridade Social. Num país com um sistema tributário, altamente regressivo, a taxação da renda (incluindo pessoa física e jurídica) das classes mais favorecidas pode e deve ser uma importante fonte de recursos para financiar o envelhecimento da população. Afinal:
“as discussões sobre qual regime de previdência adotar guardam claramente conflitos de classe, no entanto são sempre apresentadas como resultado do conflito intergeracional. (…) Na verdade os trabalhadores ficam um tanto perdidos para compreender quais são seus verdadeiros interesses: pensando no rendimento de seus fundos de pensão compartilham interesses com o rentismo, pensando em seus salários pertencem ao grupo de interesse clássico dos trabalhadores.”[4]
O baixo crescimento econômico, responsável pelas altas e persistentes taxas de desemprego e da má qualidade dos postos de trabalho oferecidos, caracterizados por baixa produtividade, são temas fundamentais para se pensar o financiamento da previdência. O desemprego aumenta o número de não idosos que não trabalham e, portanto, não contribuem diretamente para a seguridade e a baixa qualidade dos postos de trabalho compromete a produtividade dos que estão no mercado laboral. O problema, portanto, diz mais respeito ao baixo crescimento econômico brasileiro e à nossa heterogeneidade estrutural do que ao fator demográfico.
Assim:
“Ao tratar diferentemente homens e mulheres, o Estado reconhece uma desigualdade social na valoração de seus trabalhos. A Previdência Social, é hoje, a principal política que realiza a conexão econômica entre as esferas produtiva e a esfera reprodutiva, conferindo um bônus pelo sobretrabalho feminino acumulado ao longo da vida ativa.” (MOSTAFA etal, 2017).
Impactos de algumas propostas da reforma para as mulheres
A reforma da previdência em discussão propõe a equiparação da idade mínima para acesso ao benefício ou a redução da diferença de idade entre homens e mulheres e este é o ponto mais controverso na justificativa apresentada pelo governo. A primeira questão está relacionada à expectativa de vida. O governo se baseia na expectativa de vida ao nascer, em torno de 7 anos, segundo o IBGE[5]. Contudo, a diferença de sobrevida entre homens e mulheres aos 65 anos é de apenas 3 anos. “A rigor, a diferenciação das idades de acesso à aposentadoria não tem qualquer relação com a expectativa de vida: a distinção de critérios guarda proporcionalidade com as condições desiguais de inserção de homens e mulheres no mundo do trabalho.” (idem)
Em segundo lugar, essa proposta reforça as desigualdades entre gêneros no Brasil uma vez que recai majoritariamente sobre as mulheres a execução do trabalho necessário à reprodução da vida social. De acordo com a PNAD-C, em 2017, a jornada de trabalho semanal das mulheres dedicadas à afazeres domésticos e cuidados de pessoas da família ou de outro domicílio, foi de 20,9 horas e a dos homens 10,8 horas, totalizando aproximadamente um sobretrabalho não remunerado feminino de 466 horas por ano ou 84 dias. Assim, aos 62 anos de idade, contando a partir dos 16, uma mulher acumula em média 10,8 anos a mais de outras formas de trabalho do que os homens da mesma idade, sem a contribuição pecuniária correspondente para o sistema de seguridade social.
No regime de previdência rural, as mulheres atualmente podem se aposentar com 55 anos e a reforma iguala a idade mínima entre homens e mulheres em 60 anos. Assim, para as mulheres nas áreas rurais, o impacto é ainda mais perverso, uma vez que a desigualdade na distribuição do trabalho doméstico em áreas rurais é ainda maior.
E nada indica que nos próximos anos essa carga total de trabalho será reduzida. Apesar da introdução de inovações que facilitam o cotidiano doméstico, como eletrodomésticos, e da redução da taxa de natalidade, projeta-se aumento expressivo dos cuidados com os idosos, sem a perspectiva de ampliação dos serviços públicos de apoio. Muito pelo contrário, outro absurdo da reforma diz respeito à diminuição do valor dos BPC para idosos com sua desvinculação do salário mínimo. Hoje àqueles com mais de 65 anos em situação de miserabilidade – com renda familiar per capita de um quarto de salário mínimo, recebem os BPC no valor de um salário mínimo. Com a reforma, será escalonado de tal forma que, a partir de 60 anos o pagamento será de R$ 400 e apenas para quem tem mais de 70 será de um salário mínimo. De acordo com a AEPS2017, 59% dos benefícios assistenciais para idosos ativos em 2017 eram mulheres. Relembrando que a face da velhice no Brasil é feminina, representando 57% da população com idade acima de 65 anos. Assim, a possibilidade de desamparo na velhice aumenta substancialmente e, como citado anteriormente, o peso dos cuidados desses idosos recai sobre as mulheres jovens e adultas.
A terceira questão se refere ao fato de que a aposentadoria por idade é a modalidade mais acessada por mulheres. De acordo com os dados do governo federal, em 2017, 53% das mulheres se aposentaram por idade, ao passo que 29% dos homens se aposentaram por essa modalidade. Isto porque as mulheres possuem vínculos mais precários e intermitentes e entram no mercado de trabalho mais tarde e ganham menos que os homens, apesar da maior escolaridade. Apesar das mulheres compreenderem em 2018 52% das pessoas em idade de trabalhar, conforme anteriormente mencionado, somente 43% do total de contribuintes empregados em 2017 e 44% das pessoas com proteção previdenciária eram mulheres em 2016, conforme AEPS2017.
Então, o aumento da idade mínima associado à proposta de alteração do cálculo da aposentadoria para 60% da média dos salários de contribuição, acrescidos de 2 pontos percentuais a cada ano de contribuição que exceder 20 anos (de tal forma que serão necessários 40 anos para se atingir 100%), implicará em redução drástica do valor dos benefícios tendo em vista que as mulheres, por sua inserção diferenciada no mercado de trabalho, têm maior dificuldade de comprovar as contribuições. Ilustrativamente, em valores de 2017, antes da reforma o valor médio da aposentadoria feminina é de R$ 1.153,83 e com a reforma, passaria a R$ 692.
Para o regime especial dos professores, propõe-se também a equiparação entre homens e mulheres da idade mínima e do tempo de contribuição. Na iniciativa privada, a regra atual não possui um piso etário, exigindo exclusivamente tempo de contribuição de 25 anos para mulheres e de 30 para homens. Para os professores que atuam no serviço público, hoje é exigida uma idade de 50 anos (mulheres) e 55 (homens). A proposta prevê 60 anos e 30 anos de contribuição para ambos, desconsiderando que a categoria é predominantemente feminina (com mais de 70% de mulheres) e, por ser professora, não deixa de acumular as tarefas domésticas.
Esse conjunto de medidas, entre outras, reforçará o quadro de desigualdade no País, fugindo, portanto, do objetivo da atuação do Estado e das políticas públicas de promover maior equidade social.
Para sermos propositivas, uma ótima alternativa ao financiamento da previdência é a promoção do aumento da formalização e aquecimento do mercado de trabalho garantindo a inclusão de maior contingente de mulheres na vida laboral, que vai na direção contrária à precarização estimulada pela contra-reforma trabalhista. Enquanto o nível de ocupação dos homens (ocupados em relação à população em idade de trabalhar) foi de 64%, para mulheres esta razão foi de 46%. Para tal, é fundamental que sejam criados equipamentos públicos como creches para as crianças e de atividades para idosos, assim como a manutenção de um sistema de saúde pública e universal que desonerem as mulheres das tarefas de reprodução social e estimulem sua inserção em trabalhos relativos à produção social.
[1] Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS) 2017. Ministério da Fazenda, Secretaria de Previdência, Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência – Ano 1 (1988/1992) – Brasília: MF/DATAPREV. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-previdencia-social/. Acesso em: 01 mar 2019.
[2] MOSTAFA, J. etal. Previdência e Gênero: por que as idades de aposentadoria de homens e mulheres devem ser diferentes? Brasília. IPEA, Nota Técnica nº 35, 2017.
[3] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua- PNAD Contínua Anual. Outras Formas de Trabalho. Tabela: Afazeres domésticos ou cuidados de pessoas moradoras do domicílio ou de familiares moradores de outro domicílio 2016-2017.
[4] MOTHÉ, T. Três ensaios sobre o envelhecimento populacional no Brasil à luz do princípio da demanda efetiva. Tese de doutorado defendida na UFRJ, 2018.
[5] Tábuas de Mortalidade 2010/2060. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=resultados. Acesso em: 01 mar 2019.