Artigo – Os desafios da globalização para o desenvolvimento regional

Por Hoyêdo Nunes Lins – Universidade Federal de Santa Catarina

(*Artigo publicado na Revista Economistas nº 33)

 

O presente artigo versa sobre a dimensão espacial do desenvolvimento, considerando a importância que o tema ganhou, internacionalmente e no Brasil, ao menos desde os anos 1950. Argumenta-se que a globalização impõe desafios para estruturas sociais e produtivas em diferentes escalas espaciais, e que, apesar dos acenos de novas possibilidades, os processos nela enfeixados chamam a atenção para o problema das desigualdades de desenvolvimento, interpelando os formuladores de políticas. De outra parte, a ampliada mobilidade do capital repercute nos territórios e suscita reflexão, um assunto aludido principalmente com base em observações sobre Santa Catarina.

 

O interesse pela dimensão espacial do desenvolvimento

Os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial assistiram à entronização do ideário do desenvolvimento em diferentes países. Várias regiões do mundo registraram tentativas rumo ao que se pretendia como modernização das estruturas sociais e produtivas na escala dos estados nacionais. Um importante objetivo era reduzir a distância em relação aos países de economias mais dinâmicas, com níveis mais altos de produção e consumo e de acesso a serviços importantes.

A expansão da indústria foi o caminho vislumbrado e privilegiado. De alguma forma isso refletia o entendimento segundo o qual a experiência industrial do Ocidente, notadamente no noroeste da Europa e na América do Norte, indicava a orientação a ser adotada. Países da América Latina, da África e da Ásia procuraram trilhar essa via, com variados graus de sucesso. No subcontinente latino-americano, o Brasil oferece, talvez, a mais sugestiva ilustração a respeito.

Junto com o ideário do crescimento industrial, marcou o zeitgeist do período a atenção crescente para a dimensão espacial do desenvolvimento. Ao lado do âmbito temporal, dominante e sempre destacado entre os economistas, ganhou terreno o interesse por questões referentes às desigualdades socioespaciais e à localização das atividades econômicas, principalmente as de índole industrial, entre outros assuntos em relação aos quais o componente “espaço” passou a sobressair.

O contexto exibia o entendimento de que a persistência das desigualdades inter-regionais no interior dos países representava ameaça à coesão social e mesmo à unidade nacional. Aparentemente, essa visão disseminava-se sobretudo em solo europeu.  As consequências dessa percepção foram importantes, a julgar pela clara e efetiva incorporação do problema referente àquelas disparidades nas agendas governamentais.

Também se avaliava que a existência de áreas subnacionais remotas e carentes, amargando escassa vitalidade econômica em termos relativos, significava menores possibilidades para o desenvolvimento no plano nacional. Aquela situação se traduziria, entre outras coisas, em recursos desperdiçados, ociosos ou subutilizados, além de expressar insuficiências, por assim dizer, em matéria de “integração nacional”.   

Assim, desenvolvimento nacional e desenvolvimento regional tornaram-se problemas inter-relacionados. Na esfera das políticas de promoção, objetivos de desenvolvimento nacional e regional passaram a se mostrar entrelaçados. O estímulo ao crescimento industrial, por exemplo, ia de par com o interesse em sustentar e acelerar a expansão econômica e o desenvolvimento no plano regional.

A teoria dos polos de crescimento/desenvolvimento, indissociável dos estudos do economista francês François Perroux, desempenhou importante papel com respeito ao assunto. Seus conceitos nutriram simultaneamente a análise de processos observados (na qualidade de teoria explicativa) e as iniciativas de política de desenvolvimento regional (como teoria normativa).

Em maior ou menor grau, a perspectiva analítica e o uso político dos polos marcaram presença em quase todos os países onde se procurou atacar o problema das desigualdades inter-regionais e promover o crescimento econômico e o desenvolvimento das regiões necessitadas. Invariavelmente vigorou a pretensão, intrínseca à teoria, pode-se dizer, de que o impulso econômico efetuado num ponto do espaço (uma cidade ou uma região urbana, por exemplo) induzisse e irradiasse a expansão econômica centrifugamente, por diferentes tipos de conexões.

O Brasil não representou exceção no realce adquirido por essa teoria, como demonstrado, talvez principalmente, pelas políticas dos anos 1970. De fato, referências a programas regionais como Polamazônia e Polonordeste frequentaram, com alguma assiduidade, documentos técnicos e estudos acadêmicos, além de figurarem em coberturas jornalísticas. Uma ilustração do sentido e dos resultados de iniciativas com esse perfil diz respeito ao Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia.

 

A espacialidade do desenvolvimento sob o signo da globalização

O interesse pela dimensão espacial do desenvolvimento só fez crescer com a globalização. Isso teria lugar em diferentes latitudes do sistema mundial, com incidência em numerosos países e regiões.

Observe-se que, embora o termo seja polissêmico, conforme as disciplinas acadêmicas e os ângulos de visão, dizer “globalização” significa referir ao aprofundamento da fragmentação produtiva entre territórios muitas vezes distantes entre si. A inerente distribuição de papeis produtivos mostra-se acompanhada de intensificação dos vínculos comerciais envolvendo notadamente peças e componentes, algo observado em vários setores industriais.

Os arranjos e fluxos ligados a esse comércio são amplamente transfronteiriços, revelando-se notável a sua particular intensidade no Leste e no Sudeste da Ásia. Em regra, contudo, a movimentação nesses termos ocorre em escala intercontinental. Numa palavra, exibe abrangência global.

Expressão que permite captar essa configuração é cadeia global de valor, uma expressão de uso disseminado desde o começo do século XXI. Caracterizando a produção e o comércio internacional em diferentes setores industriais – do automotivo ao alimentar, do de computadores ao de confecções –, tais cadeias se expressam, por exemplo, em marcada e fortemente hierarquizada divisão espacial (internacional) do trabalho.

Essas estruturas evocam igualmente terceirização ou subcontratação produtiva internacional, com exercício de poder e coordenação (governança), com vários sentidos e abrangências, protagonizado pelas empresas maiores e mais fortes. Em alguns setores, contam-se nos dedos as corporações que efetivamente exercem esse tipo de papel. A indústria automotiva, cujo perfil é o de um grande oligopólio internacional, apresenta, talvez, a melhor indicação.

No que toca ao funcionamento dessas cadeias, a globalização fortalece o interesse pela dimensão espacial do desenvolvimento porque o modo como países e regiões participam das respectivas teias de vínculos costuma ter variadas e importantes consequências. A natureza e a forma da inserção nessas interações parece influenciar consideravelmente as possibilidades de crescimento econômico e desenvolvimento no período atual.

Na divisão internacional (espacial) do trabalho que permeia essas tramas de relações produtivas e comerciais, as atividades exibindo níveis tecnológicos e salariais mais baixos convivem com escassa agregação de valor em termos comparativos. Para as sociedades e os territórios assim implicados, a participação em cadeias globais outorgaria menores possibilidades, no cotejo com o testemunhado em territórios – geralmente em países centrais da economia mundial – onde se concentram o dinamismo inovador e o essencial da governança em nível de cadeia.

É sugestiva e mesmo paradigmática a respeito a indústria de confecções do vestuário. Grandes empresas ocidentais, donas de marcas fortes e dominantes no acesso ao mercado final, contratam a produção – impondo todos os parâmetros – junto a fabricantes situados na periferia do sistema mundial. As empresas globais que articulam esses vínculos são conhecidas: basta consultar catálogos de artigos de vestuário esportivo ou de produtos fast fashion para que se sejam identificadas.

Os territórios onde se materializam essas relações só interessam às empresas líderes de cadeias como espaços de produção. A atratividade desses ambientes, quer dizer, a razão básica pela qual canalizam contratos de fornecimento, reside em padrões de remuneração e condições trabalhistas que se refletem em custos mais baixos de produção. Não raramente, observam-se nessas realidades complacência e descaso de autoridades para com o descumprimento de leis e normas trabalhistas. Países e regiões pobres de Ásia, África e América Latina exibem situações desse tipo.

As perspectivas desses países e regiões em face da globalização assim manifestada estão longe de ser animadoras. O quadro parece ser de aprofundamento das desigualdades no seio do sistema mundial, quanto ao dinamismo da economia e às possibilidades de desenvolvimento. O mesmo pode ser dito, ainda com mais razão, sobre os avanços tecnológicos e a capacidade de inovação, esferas de importância estratégica perante ao brutal acirramento da concorrência que marca o período contemporâneo.

Poucos discordariam de que, nessas circunstâncias, crescem e se intensificam os desafios com que se deparam os responsáveis pela promoção do crescimento econômico e do desenvolvimento. É assim quer no nível nacional ou no local-regional de atuação e formulação/execução das correspondentes políticas e iniciativas.

 

Mobilidade do capital e possibilidades para as estruturas locais

Paralelamente à intensificação do comércio, o período atual também exibe uma grande mobilidade transfronteiriça do capital. Investimentos de portfolio atingem elevados patamares, e o mesmo se verifica nos investimentos externos diretos envolvendo a criação de novas capacidades produtivas ou compras de instalações já existentes. Os imperativos da globalização (sobretudo a maior concorrência) subjazem a tais processos.

Essa movimentação do capital, mormente no setor produtivo, tem consequências nos ambientes implicados. Onde se registram saídas de atividades, ligadas a processos de reestruturação em setores ou empresas que resultam em contração da capacidade instalada na origem e mudanças locacionais, situações de declínio econômico podem se produzir, resultando em situações de crise mais ou menos prolongadas. Exemplos não faltam.

O filme-documentário de Michael Moore (Roger & Me) sobre o fechamento de fábricas da General Motors na cidade de Flint, no estado americano de Michigan, nos anos 1980, registrou as graves dificuldades locais decorrentes de reestruturação corporativa que incluía a transferência de fábricas para o México. Essa experiência é somente uma entre várias que, em diferentes momentos e locais, pontuaram a trajetória desse setor.

No Brasil, o oeste catarinense testemunhou nos anos 1990 mudanças na agroindústria de carnes, carro-chefe da economia regional, que envolveram grandes investimentos das maiores empresas em outras regiões do país. Nesse processo, caiu bastante o número de propriedades rurais familiares inseridas no historicamente instalado sistema de integração colono-frigorífico, contribuindo para o declínio populacional em vários municípios devido à emigração impulsionada pelo estreitamento das possibilidades locais.      

Os efeitos socioterritoriais não são menos importantes em áreas para as quais os investimentos se dirigem. Podem ocorrer mudanças de patamar tecnológico e avanços organizacionais, com modernização produtiva, entre outros aspectos. Mas também a desestruturação de atividades ou práticas há longo tempo enraizadas, repercutindo social e economicamente, pode ter lugar ou se intensificar.

Mostra-se eloquente o que aconteceu no setor lácteo brasileiro depois da vigorosa entrada da italiana Parmalat, nos anos 1990. A investida foi marcada pela escalada nas compras de laticínios locais e a configuração de situações de exclusividade na canalização da matéria prima em diversas bacias leiteiras, alterando estruturas tradicionais. No começo da década seguinte, com a crise que levou a companhia à falência, dificuldades foram amargadas pelos produtores de leite e demais fornecedores nos locais em que a Parmalat criara vínculos.             

Sobretudo em áreas correspondentes a clusters industriais – quer dizer, em termos gerais, aglomerações de produtores setorialmente especializados que atuam com  “tecidos” institucionais de apoio –, os investimentos de origem extrarregional tendem a repercutir fortemente. Esse problema tem motivado estudos sobre experiências em diversos países: como esses arranjos são produtos da história (de países ou lugares), exibindo, portanto, “profundidade” produtiva, institucional e mesmo sociocultural, não admira o interesse (e a inquietação) em torno do potencial transformador incrustado nos capitais vindos de fora.

Desassossego nesses termos há de incidir atualmente no setor de revestimentos cerâmicos do sul de Santa Catarina, um importante reduto de produção de pisos e azulejos. No intervalo de poucos meses foram vendidas duas tradicionais empresas do setor, surgidas em Criciúma nos anos 1960: no segundo semestre de 2018 a Eliane passou às mãos do grupo americano Mohawk Industries; no primeiro semestre de 2019 a Cecrisa foi comprada pela brasileira Duratex.

A Eliane e a Cecrisa eram (são) pilares do cluster ceramista do sul catarinense. Em torno de ambas constituiu-se arranjo com diversos protagonistas das atividades vinculadas, como os colorifícios (fornecedores de insumos minerais para uso na decoração de produtos cerâmicos) e outros fornecedores e também instituições. Presentes em setor com grande abrangência e forte enraizamento socioeconômico no sul de Santa Catarina, os agentes locais da produção ceramista certamente perscrutam o futuro procurando decifrar o que lhes poderá reservar a radical mudança patrimonial ocorrida.        

Atmosfera de dúvida também persiste, provavelmente, entre fabricantes catarinenses de autopeças e componentes desde que a alemã BMW inaugurou, em 2014, uma montadora de automóveis em Araquari, município da região nordeste de Santa Catarina. Nesse tipo de iniciativa, as possibilidades de indução econômica e desenvolvimento local ou regional têm muito a ver com as políticas das grandes empresas sobre compras e busca de serviços in loco. Ora, mesmo possuindo fábricas em vários países, o Grupo BMW, no ano em que suas operações começaram em Araquari, comprava na Europa nada menos que 80% do que utilizava para produzir veículos (em todos os lugares), o que justifica indagações sobre o que representaria a instalação da montadora para o tecido industrial de Santa Catarina.

A título de epílogo

Em face dos desafios (e também oportunidades) da globalização, as políticas e iniciativas de promoção das atividades econômicas e de apoio ao desenvolvimento têm a sua importância magnificada. Nos ambientes diretamente envolvidos (regiões, cidades), o assunto há de representar motivação para que estratégias sejam delineadas e ações correspondentes sejam protagonizadas.

Isso é terreno a ser laborado no marco de interações construtivas envolvendo representantes de todos os segmentos das sociedades implicadas. A ideia de força-tarefa no âmbito territorial, estruturada com vistas às providências necessárias, não parece desprovida de sentido. Mobilizar os agentes e garantir-lhes representatividade nos debates e nas definições constituiriam procedimentos inescapáveis.  

 

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