A caixa de ferramentas do Banco Central
Por Fernando de Aquino, economista. Membro da Comissão de Política Econômica do Cofecon. Publicado originalmente no portal GGN
Muito tem animado o debate público, o nível de taxas de juros vigente no país. Questiona-se a necessidade e conveniência desses níveis reconhecidamente altos, quase sempre entre os dois maiores do mundo, ao que também se atribuem motivações políticas e favorecimentos. Sem analisar a pertinência de tais argumentos, pretendemos explorar outros aspectos do tema. Podemos partir da necessidade de conciliar controle da inflação com elevação dos investimentos o suficiente para manter um ritmo de crescimento que nos permita alcançar a qualidade de vida dos países mais desenvolvidos, ao menos em algumas décadas, como o grande desafio da política macroeconômica atual.
Nesse sentido, o Plano Real, embora obtendo relevante êxito em reverter um descontrole inflacionário de cerca de quinze anos, instituiu em certo regime de política macroeconômica que vem mantendo a economia “travada”, no que se pode chamar semi-estagnação. No período 1996-2023, o crescimento real médio do PIB per capita do Brasil foi de 1,2% a.a., pouco acima da metade dos 2,3% a.a. do mundo [Banco Mundial]. Ao invés de alcançar o mundo desenvolvido, estamos nos distanciando cada vez mais. Ainda pior, os juros extremados desse regime tem sido um dos maiores, senão o maior, mecanismo de concentração de renda no país.
A narrativa, tanto do Banco Central quanto dos operadores do setor financeiro, repercutida amplamente pela mídia corporativa, é de que não haveria alternativas. O Conselho Monetário Nacional definiria as metas para inflação, que precisam ser baixas para mitigar perdas de poder de compra que penalizam muito mais os segmentos de mais baixa renda. A autoridade monetária teria como mandato principal a manutenção da inflação dentro dessas metas. Para tanto, utilizaria um instrumental estritamente técnico, que envolve indicadores como taxa natural de juros, aquela que manteria a atividade econômica no seu máximo sem afetar a inflação, e expectativas de inflação, que teriam influência decisiva na formação de preços, contando com apenas uma ferramenta, a taxa Selic – remuneração dos empréstimos de um dia entre Banco Central e bancos, que influencia as demais taxas de juros do país.
As estimativas da taxa natural para o Brasil, realizadas pelo Banco Central e outros agentes, têm sido elevadas, bem mais que as de outros países, o que seria consistente com uma inércia inflacionária ainda pesada entre nós e com a indevida missão de acomodar os chamados choque de oferta. Assim sendo, pode-se esperar que essa taxa mantenha um retorno sobre a dívida pública que acomode, confortavelmente, riscos percebidos por seus detentores. Desse modo, fica difícil acreditar que resultados ou discursos do governo minimamente desfavoráveis, em termos de déficits fiscais, possam aumentar a percepção de risco de carregamento da dívida governamental além da gordura habitual da taxa natural de juros.
Em geral, o Banco Central já tem mantido juros muito altos, com a política de controle da inflação, para precisar aumentar ainda mais para o mercado continuar aceitando carregar passivos públicos. Portanto, do ponto de vista das exigências de retorno mínimo para o carregamento da dívida pública, existe espaço para queda de juros. Mais fácil acreditar em gatilhos, que geram movimentos especulativos, com operadores tentando antecipar vendas na alta e compras na baixa.
Mesmo assim, existem fundamentos para os riscos de um endividamento público explosivo. Com a dívida pública crescendo, rápida e consistentemente, além do PIB, deve-se considerar as dificuldades de sua rolagem, eventual moratória política, busca de redução desses ativos no portfólio dos detentores, causando aumento de crédito ao setor privado pelos bancos, substituição por outros ativos pelos portfólios domésticos e fugas de capitais pelas carteiras globalizadas. Contudo, não existem indícios concretos de tais movimentos, apenas eventuais previsões dessas possibilidades no longo prazo, em geral com base em modelos econométricos.
Os modelos econômicos utilizados enrijecem excessivamente horizontes de longo prazo, mas mudanças estruturais, de diversas magnitudes, vão ocorrendo, alterando oportunidades e trajetórias esperadas inicialmente. Por exemplo, um surto de crescimento favoreceria a aceitação de um endividamento público maior, mas não tendo sido antecipado pelos modelos de equilíbrio geral adotados, poderia ser evitado. O longo prazo do mundo real é sempre muito mais aberto.
O grande truque é que existem alternativas à política monetária atual, sem precisar nada de exótico ou radical. Seriam formas de induzir reduções estruturais na taxa natural, permitindo a prática de juros mais baixos sem comprometer o controle da inflação. Por um lado, o Governo Federal pode agir diretamente nos mercados do setor real. Estoques reguladores, impostos de importação e de exportação, administração de preços estratégicos, como derivados de petróleo e energia elétrica, e investimentos em matriz energética menos onerosa são ferramentas que podem ser utilizadas pelo Governo federal para auxiliar nesse controle.
Por outro lado, o próprio Banco Central pode lançar mão de outras ferramentas para viabilizar a manutenção de juros mais baixos. Algumas visariam a diminuição da alavancagem de crédito, sendo recomendável preservar os direcionados a investimento, como aumentos em recolhimentos compulsórios e em capitalizações pelos índices de Basiléia. Trata-se de ferramentas já recorrentemente utilizadas pelo Brasil e por vários países do mundo, que poderia ter resultado diferente dos juros elevados ao alcançar menos os investimentos e ainda por não ter o efeito concentrador da exorbitante remuneração da dívida pública.
Outro tipo de ferramenta atua sobre as taxas mais longas que a de um dia, como a Selic. Após a crise financeira de 2008, vários bancos centrais começaram a adotar essas ferramentas, que consistem em negociações de ativos com vistas a influenciar essas taxas mais longas e/ou o estabelecimento de metas explícitas para controlá-las. A partir da pandemia, muitos outros bancos centrais aderiram a essas práticas, sendo essas negociações autorizadas também para o Banco Central do Brasil, mas não chegaram a ser realizadas.
Estudos empíricos indicam a queda na volatilidade das curvas de juros após serem controladas pelos bancos centrais, o que já permite a prática de menores níveis de taxa com efeitos equivalentes. Efeito ainda mais importante seria a possibilidade de queda substancial na taxa de um dia, que atualmente precisaria ser extremamente elevada, por ser a única ferramenta usada para controlar a inflação e influenciar as mais longas. Vale salientar que não se deve esperar que grandes reduções da Selic levem a uma fuga dos títulos públicos a ela indexados, pois não corresponde ao ocorrido recentemente.
De junho de 2020 a março de 2022, a taxa Selic real manteve-se negativa, sem alterar a tendência de crescimento da dívida pública a ela indexada. A ausência de fuga dessa modalidade de ativo, mesmo em 21 meses de capitalização negativa, indica que ela esteja funcionando também como quase-moeda – disponibilidades imediatas de instituições financeiras e agentes não financeiros – se esperando que continue a ser mantida, mesmo com remuneração muito mais baixa que a atual. Os títulos do governo indexados à Selic representaram média de 44% da dívida bruta do governo geral, no período 2007-2023, chegando à metade em 2023 [Banco Central do Brasil], o que indica o potencial de redução de despesa financeira e de concentração de renda decorrente de diminuições substanciais daquela taxa.