Artigo – A proposta de reforma tributária do governo federal: o Projeto de Lei nº 3.887/20 – Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços – CBS

Por Roberto Bocaccio Piscitelli – Economista, contador, pós-graduação em Política e Administração Tributária – FGV e em Administração Econômica e Financeira – Paris I, mestrado em Administração Pública – UnB.

(Artigo originalmente publicado na 38ª edição da revista Economistas)

 

I – Considerações gerais

                O Projeto de Lei nº 3.887/20 foi anunciado como a primeira parte da Reforma Tributária de iniciativa do Poder Executivo. Há algumas ideias gerais sobre o que seriam as etapas seguintes, mas nada muito concreto. Não há tampouco prazos definidos, embora inicialmente se tivesse anunciado um prazo subsequente de 30 dias, sem novidades desde então. Com isso, não é possível termos uma visão de conjunto, integrada, do que se poderia vislumbrar como o arcabouço de um novo sistema tributário.

                O que mais tem ocupou o debate posteriormente foi a prorrogação da desoneração da folha de salários, assunto associado à criação de um novo tributo, para efeito de compensação; mas isso contraria princípios da campanha que elegeu a atual equipe de governo e a própria filosofia da área econômica. Cogitou-se também a reoneração da cesta básica, assunto igualmente indigesto.

Entre as matérias seguidamente mencionadas consta a redução do Imposto de Renda das pessoas jurídicas, paralelamente ao aumento do imposto para as pessoas físicas, com ênfase na tributação de lucros e dividendos distribuídos. É ainda lembrada a possibilidade de revisão das inúmeras hipóteses de pejotização, mecanismo que levou um grande número de contribuintes à conversão de pessoas físicas em jurídicas, gozando de tratamento tributário favorecido em relação aos assalariados e servidores em geral. E, no tocante aos tributos indiretos – que constituem o foco das propostas no âmbito parlamentar -, seria “reservado” à União um IPI seletivo, incidente precipuamente sobre cigarros e bebidas.

                Como se pode constatar, as propostas mais concretas não estão voltadas para a tributação patrimonial propriamente dita, como a implementação do imposto sobre grandes fortunas, o aperfeiçoamento do imposto sobre heranças e doações, ou o fortalecimento do imposto territorial rural, por exemplo. Em outros termos, o critério da maior justiça fiscal – como o aumento da progressividade dos tributos diretos -, não tem merecido a devida atenção por parte dos legisladores, que se concentra nos chamados tributos indiretos, em particular os incidentes sobre o faturamento, a receita, cuja base é o consumo, e tende a ser mais regressivo.

                O objetivo explícito, em quase todos os casos, é a simplificação, traduzida pela supressão ou fusão de tributos e eliminação de obrigações, com vistas à redução de custos. É óbvio que a possibilidade de eliminar as situações em que se verifica cumulatividade (ou superposição) é sempre desejável, e está associada à maior transparência e menor ocorrência de contenciosos administrativos e judiciais, que oneram Fisco e contribuintes, e prolongam prazos de (des)cumprimento de obrigações tributárias, o que não vai zerar as inúmeras pendências provocadas pela legislação e sua interpretação.

Nesse sentido, a proposta em foco não elimina o estoque de questões que envolvem o cálculo e a cobrança do PIS/PASEP sobre receitas, sobre a folha e importações, e a COFINS sobre receitas e importações. E certamente continuarão a existir dúvidas e questionamentos sobre o conceito de insumos, para efeito de definir o que é valor agregado, por exemplo.

De toda a maneira, convém sempre chamar a atenção para o fato de que as modificações propostas não tornam necessariamente o sistema mais justo, o que depende fundamentalmente de uma mudança de foco que, em nosso entendimento, consiste não só em reduzir a desproporção entre tributos indiretos e diretos, como também em aumentar e aperfeiçoar a tributação sobre a renda e o patrimônio – como em praticamente todas as nações mais avançadas -, inclusive pela implementação e criação de outros tributos, bem como tornar efetivas sua cobrança e execução.

Afinal, mesmo sob o enfoque estrito da tributação indireta, há muitos avanços que podem ser alcançados, como, a título ilustrativo,  mediante a adoção de critérios que assegurem decididamente uma aplicação mais ampla da essencialidade e da seletividade, e, de um modo geral, da generalidade, universalidade e progressividade, princípios inseridos na nossa Carta Magna, mas adotados apenas em caráter retórico.

De tudo o que constitui a proposta do governo, não se extrai nenhuma conclusão pela evidência de aumento ou diminuição da carga tributária, pois, nesses casos, quase sempre os cálculos são insuficientes, incompletos, e cada interessado tem uma visão particular. A propósito, aliás, essa questão da carga tributária no Brasil vem sendo tratada há muito tempo com uma abordagem muito mais ideológica que doutrinária ou mesmo pragmática. Seria essencial discutir previamente a suficiência da carga em função das necessidades do Estado e da disposição da sociedade em financiar as funções definidas como de sua responsabilidade. Em outras palavras, tem-se tentado convencer a sociedade de que se deve fixar inicialmente um patamar de arrecadação que se queira atingir, ao qual se subordine um teto de gastos passível de se realizar.

Demonstra essa desconexão do orçamento brasileiro o fato de que tanto a desoneração da folha de pagamento (cujo veto presidencial foi finalmente derrubado pelo Congresso Nacional), como a pretendida desoneração da cesta básica não estão conectadas com mecanismos de compensação das respectivas perdas de receita para 2021, nem apoiadas em flexibilização do teto de gastos, que permitiriam prévio equacionamento da questão fiscal, que fosse explicitado orçamentariamente. Tampouco o acompanhamento e avaliação das medidas adotadas ou a adotar têm sido implementados no sentido de corrigir distorções que sejam constatadas ao longo do período durante o qual os efeitos das iniciativas governamentais sejam sentidos. A execução fiscal, portanto, decorrente das modificações propostas permite que cada um se valha das estimativas que lhe convém.

 

II – O Projeto de Lei 3.887/20 e as outras propostas em tramitação.

 As outras duas propostas que avançaram em sua tramitação são:

– a PEC nº 45/19, na Câmara dos Deputados; e

– a PEC nº 110/19, no Senado Federal.

                A proposição objeto de nosso estudo é um projeto de lei ordinária (que não exige quórum qualificado). Como se sabe, em se tratando de lei complementar, se exigiria a maioria absoluta dos votos das duas Casas. No caso de emenda constitucional, exigem-se duas votações, em cada uma das duas Casas, com 60% dos votos.

                O PL nº 3.887/20 cria a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços – CBS, e consiste, basicamente, na unificação de duas contribuições sociais federais, o PIS e a COFINS. A PEC nº 45//19 cria o Imposto sobre Bens e Serviços – IBS, com a pretensão de unificar cinco tributos: PIS, COFINS e IPI (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal); encontra-se em Comissão Especial da Câmara. A PEC nº 110/19 cria o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços  –  IBS, de competência estadual -, englobando nove tributos: IPI, IOF, PIS/PASEP, COFINS, salário-educação, CIDE-Combustíveis (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal), e o Imposto Seletivo (federal); encontra-se em uma Comissão Mista (de senadores e deputados).

                Embora possa haver questionamentos sobre a instituição da contribuição social – denominada “sobre operações com bens e serviços” mediante lei ordinária – e não complementar (CF, art. 195, § 4º, c/c art.154, I), pode-se justificar essa opção em razão de (o fato gerador e) a base de cálculo se referir(em) às receitas decorrentes de atividades que constituem o objeto social da entidade (em consonância com os termos do Decreto-lei nº 1.598/77, art. 12) (além das importações de bens e serviços do exterior). Desse modo, a denominação específica não descaracteriza  a natureza em si do tributo (CTN, art. 4º, I), que incide sobre a receita ou o faturamento e sobre o importador de bens e serviços do exterior, e, assim, se enquadra nos dispositivos constitucionais pertinentes (CF, art. 195, inc.s I, b, e IV).

A clara intenção foi abranger as atividades da indústria, do comércio e serviços, ressaltando o caráter de generalidade, no mesmo campo de incidência do PIS/COFINS. Não nos parece sustentável o ponto de vista segundo o qual o termo bens não compreende mercadorias (comércio), muito embora essa objeção tenha sido formulada. A ideia de quem defende a distinção baseada nos dois termos – bens x mercadorias – é que bens é palavra para designar especificamente coisas a serem utilizadas ou consumidas e, portanto, situadas fora do âmbito do comércio propriamente dito.

                Importante destacar que a base imponível – receita bruta – é bem menos abrangente que a utilizada atualmente para o cálculo do PIS e da COFINS. (Alegou-se, também, que o Projeto fez referência à base de cálculo e não ao fato gerador.) Não se trata, portanto, da totalidade das receitas auferidas, como disposto no art. 1º, § 1º, das leis de regência dessas contribuições – nºs 10.637/02 e 10.833/03 -, mas das que correspondem às atividades-fim da entidade, de acordo com o seu objeto social. Incluem-se os acréscimos tais como multas e encargos, penalidades que normalmente não deveriam ser acrescidos. Não integram a base de cálculo da receita bruta:

– o ICMS e o ISS, destacados nos documentos fiscais;

– descontos incondicionais; e

– a própria CBS.

                O ICMS é de competência estadual, calculado “por dentro”, integrando o valor da mercadoria, compensando-se com os créditos nas compras. O ISS é de competência municipal, calculado “por fora”, acrescido ao valor do serviço, tendo caráter cumulativo. Os descontos incondicionais, como tais, são destacados nos documentos relativos às operações, para fins gerenciais e de controle. Portanto, não são deduzidos os valores das outras contas retificadoras da receita bruta, como, por exemplo, abatimentos, fretes, seguros. O IPI é considerado como um acréscimo à receita bruta (alguns autores o incluem no faturamento), calculado “por fora”, também compensável com os créditos nas compras, não integrante da receita bruta.

                Por aí se pode avaliar a concentração de tributos – das diferentes esferas – incidentes sobre as mesmas bases, e como a chamada desoneração da folha vem se somar aos já existentes, ao “transferir” a incidência sobre as remunerações do trabalho para a receita bruta (ou faturamento). Interessante notar como o sistema tributário concebido em 1988 tratou de ampliar e diversificar as fontes de financiamento (especialmente da Seguridade Social), que cada vez se concentra mais.

Ressalte-se, ademais, que, entre as características do nosso sistema tributário, além da cumulatividade de vários tributos, uns por sua própria essência, outros entre si (por ex., mercadoria que já teve a incorporação de serviço), ainda registra a superposição de uns em relação a outros (por ex., IPI incidindo sobre produto cujo preço já vem com o ICMS embutido).

Não se incluem receitas não operacionais, como ganhos de capital, bem como as de caráter propriamente financeiro, como juros e dividendos, bem como as receitas decorrentes da exportação para o exterior, assegurados os créditos correspondentes. A receita bruta tem definição legal, como se depreende do Decreto-lei nº 1.598/77, art. 12:

Art. 12. A receita bruta compreende:

I – o produto da venda de bens nas operações de conta própria;

II – o preço da prestação de serviços em geral;

III – o resultado auferido nas operações de conta alheia; e

IV – as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nos incisos I a III.

                Entretanto, se o objeto social compreender a participação em outras entidades – é o caso das holdings, lucros e dividendos, e os resultados da equivalência patrimonial estarão abrangidos na definição da receita bruta. Quem defende a desoneração desses valores alega que os mesmos constituem resultados já tributados nas pessoas jurídicas investidas, gerando cumulatividade. A particularidade a ressaltar é que os lucros e dividendos são distribuídos, e o resultado da equivalência patrimonial é a incorporação ao patrimônio da investidora do resultado apurado pela investida e não distribuído (que pode ser positivo ou negativo). Quando a distribuição envolver juros sobre o capital próprio, é de se ressaltar o fato de que poderão ser tributados a alíquotas distintas, dependendo da alíquota a que diferentes tipos de sociedade estarão sujeitas (o que enseja discussões acerca da presumível falta de isonomia no tratamento tributário dos respectivos sócios).

                A alíquota tida como uniforme e única será de 12%, mas, na realidade, é diferente segundo a natureza da atividade. Assim é que bancos, seguradoras, factoring, planos de saúde, entre outros, pagarão 5,8%; essas empresas, além das enquadradas no Simples Nacional, a Zona Franca de Manaus e pequenos agricultores – que mantêm regime diferenciado – não apuram (não geram) e não transferem (não apropriam) créditos, dos quais poderiam compensar-se, mas dão direito a crédito aos adquirentes de seus produtos.

Sendo o tributo em geral calculado sobre o valor agregado (ou adicionado), o valor a ser recolhido (ou compensado) é apurado pelo saldo entre saídas e entradas (ou entradas e saídas), o que é da essência dos tributos não cumulativos (em que não incide tributo sobre tributo). Em tese, o mecanismo torna a tributação mais transparente e racional, mas isso não assegura, em absoluto, que as alíquotas estejam calibradas, em atendimento ao preceito da equidade, isto é, possibilitando a cobrança justa (ônus equivalentes para iguais e diferentes para desiguais).

                Por outro lado, há numerosas isenções ou não incidências: prestação de serviços de transporte coletivo público, templos religiosos, partidos políticos e sindicatos, serviços sociais autônomos, entidades representativas de classes e conselhos de fiscalização de profissões, instituições filantrópicas e fundações, condomínios de proprietários de imóveis, cooperativas (estas só nas operações entre elas e seus associados), pretensamente por não realizarem atividades estritamente econômicas.

Há ainda determinados produtos que se sujeitam ao regime monofásico (por unidade de medida), o que significa que um contribuinte paga pela cadeia de produção, o que facilita a administração do tributo e reduz a possibilidade de sonegação, tratamento especialmente indicado para aqueles setores em que há uma concentração na origem e uma dispersão na destinação, em que se destacam combustíveis – gasolina, diesel, GLP, gás natural, querosene de aviação, biodiesel, álcool – e cigarros.

                O cálculo do novo tributo, diferentemente do ICMS, por exemplo, será feito “por fora”, como se costuma dizer nos casos em que o percentual nominal é igual ao efetivamente calculado, como acréscimo ao valor da operação, o que é um fator de aumento da transparência, num sistema em que as bases tributáveis muitas vezes se superpõem.

                Entre as dificuldades na adoção da mudança proposta pela nova legislação, vislumbra-se a imputação de responsabilidade tributária às plataformas digitais, que atuariam como intermediárias – caracterizadas como pessoas jurídicas – entre fornecedores e adquirentes nas operações não presenciais (inclusive na comercialização por meios eletrônicos). Isto decorreria da falta de emissão de documento fiscal eletrônico pelo vendedor. Ocorre que o Código Tributário Nacional só admite a transferência de responsabilidade a terceiros pelo cumprimento de obrigação principal, e não da acessória (falta de emissão do documento fiscal eletrônico). A plataforma seria obrigada a fiscalizar os vendedores ou teria alguma ingerência nos seus procedimentos? No caso de importações, o problema é ainda mais complexo, na hipótese de se tentar responsabilizar plataformas localizadas no exterior, por não terem as autoridades brasileiras jurisdição que viabilize o cumprimento da obrigação.

 

III – Conclusão.

                O Projeto do Executivo dá indícios de que o governo quis demonstrar a intenção de ser protagonista neste longo processo de reforma tributária, contrapondo-se às iniciativas no âmbito do Legislativo.

                É uma manifestação tímida, à medida que trata de apenas duas contribuições federais que têm a mesma base de cálculo.

                Comprometeu-se a avançar nessa reforma fatiada, muito “atrasada” em relação às discussões sobre o assunto no âmbito parlamentar, que contemplam interesses bem específicos de grupos de pressão claramente identificados.

                Em todos os casos, a visão é parcial e está centrada na tributação indireta e no critério da simplificação, na redução de custos para o cumprimento das obrigações e na agilização dos respectivos procedimentos.

                Em todos os casos, há uma participação insignificante da sociedade e uma expectativa enorme na redução da carga tributária, o que é um viés inconveniente e inoportuno do ponto de vista das nossas carências históricas e das desigualdades abissais em nossa sociedade, agravadas pelo momento excepcional que estamos vivendo, em função da pandemia do coronavírus e do déficit fiscal continuado, com tendência de crescimento.

                Mais do que nunca, é indispensável desenhar um outro modelo, bem diferente do figurino que tem sido mostrado desde que a Reforma Tributária passou a ser tema dominante em todas as manifestações de nossas elites políticas e econômicas, mas sempre passando longe da busca por um sistema que, a par de aliar mais racionalidade e, preferencialmente, mais simplicidade, possa associar a suficiência necessária para enfrentar os desafios do desenvolvimento com a justiça fiscal inadiável para integrar a sociedade e incluir os cidadãos brasileiros.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Projeto de Lei nº 3.887, de 2020. Disponível em www.camara.leg.br.

BRASIL. Decreto-lei nº 1.598. de 1977. Disponível em http://www.planalto.gov.br.

BRASIL. Código Tributário Nacional. Disponível em www.senado.leg.br.

FUNARO, Hugo e outros.  Projeto da CBS precisa ser aperfeiçoado. In Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-17/opiniao-projeto-cbs-aperfeicoado.

JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira. Reflexões críticas sobre a CBS contida no Projeto de Lei nº 3887/20. Disponível em https://ibedaft.com.br/cbs/.

ANFIP e FENAFISCO. A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas. Eduardo Fagnani (org.). São Paulo: Plataforma Política Social, 2018.

                 

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