Artigo – A verdade da História. Amador: da revolta ao título de rei
Autor: Armindo do Espírito Santo – Doutor em Economia e investigador do CEsA/CSG/ISEG-UL
Introdução
Este artigo discute a história do negro escravo Amador que chefiou uma rebelião na ilha de S. Tomé em 1595, contra a presença dos brancos portugueses, que dominavam a ilha no âmbito do regime colonial esclavagista. Depois de se proclamar rei, propôs libertar todos os escravos negros desse tal regime repressivo. Em particular, o artigo discute a origem de Amador, o seu estatuto, as motivações da revolta e a data da sua morte. E mostra que a revolta se fundamentou numa reação contra o regime esclavagista repressivo e não propriamente contra a raça branca como a generalidade dos historiadores afirma.
Palavras-chave: Amador, revolta, S. Tomé, angolares, rei.
JEL: N01
Breve história do território de Amador
Este artigo discute o papel da mais importante figura dos nativos são-tomenses de origem africana que se insurgiu contra o sistema esclavagista português na ilha de S. Tomé em 1595.
- Tomé é uma das duas principais ilhas que formam o arquipélago de S. Tomé e Príncipe o qual é um pequeno território insular de África Ocidental. A ilha de S. Tomé tem cerca de 857 km2 de superfície e a do Príncipe apenas 139 km2, perfazendo todo o arquipélago apenas cerca de 1000 km2. Situa-se no meio do oceano Atlântico, próximo do Golfo da Guiné, quase sobre a linha do Equador e a 300 km do continente africano.
De acordo com a generalidade dos historiadores, o arquipélago foi descoberto pela marinha portuguesa no terceiro quartel do século XV. A ilha de S. Tomé foi, provavelmente, descoberta em 21 de Dezembro de 1470 e a do Príncipe em 17 de Janeiro de 1471, ambas por Pedro de Escobar e João de Santarém.
As ilhas foram encontradas desertas e somente em 1493 os portugueses decidiram iniciar, de forma efetiva, a sua povoação a partir da ilha maior[1]. Chegados a S. Tomé em 1493, devidamente equipados, o capitão donatário Álvaro de Caminha e os seus homens, os degredados, crianças judias e escravos resgatados na costa ocidental de África, deram o início ao povoamento e procuraram, desde logo, descobrir as riquezas da ilha pelo que rapidamente palmilharam todo o território. Encontraram basicamente ribeiras e vegetação densa e nenhuma evidência de presença humana, nomeadamente plantas alimentares ou animais domésticos, pelo que é fantasioso dizer-se que havia seres humanos na ilha quando os portugueses lá chegaram.
Deram início à sociedade colonial com base no paradigma de economia seminatural produzindo bens de subsistência para a alimentação humana e derrube de árvores para a exportação para Lisboa e, ao mesmo tempo, prepararam-se para a produção de açúcar que só teve início a partir da segunda década do século XVI. Entretanto, ocorreram acasalamentos entre brancos e mulheres negras escravas que originaram o nascimento de mulatos, dos quais, sobretudo os legítimos viriam a assumir importante protagonismo na sociedade são-tomense escravocrata um pouco antes do início da segunda metade do século XVI.
As ilhas foram descobertas, essencialmente, para servirem de entreposto ao comércio negreiro que constituía o negócio mais rentável da época. Mas tinha subjacente a produção e comercialização de açúcar.
O regime de trabalho escravo, introduzido no território desde o início, sofreu um duro agravamento com a entrada em funcionamento dos engenhos de açúcar no início do século XVI, que assinalou a emergência do sistema pré-capitalista, e gerou intensos conflitos entre os mulatos e negros contra os roceiros ricos em S. Tomé até que, em 1595, um negro escravo de nome Amador decidiu mobilizar muitos escravos em torno do seu projeto contra a presença dos brancos na ilha de S. Tomé. É sobre este revoltoso, que se intitulou rei da ilha de S. Tomé em pleno período colonial, que este artigo aborda.
Enquadramento geral
A figura de Amador tornou-se o centro da História de S. Tomé e Príncipe a partir do momento em que suscitou interesse de muitos estudiosos os quais têm refletido sobre o seu desempenho na ilha de S. Tomé nos anos noventa do século XVI. Esse interesse foi motivado pela escolha que o primeiro governo pós-independência fez dos seus heróis escolhendo Amador, e também João Rodrigues Gato (Yon Gato), para justificar que, afinal, houve figuras históricas que desencadearam lutas pela libertação do território, pretendendo, assim, contrariar a tese dominante na época, segundo a qual, os são-tomenses não lutaram pela independência. Dizia-se que ela foi, simplesmente, entregue aos ilhéus numa “bandeja”. Por conseguinte, o primeiro governo pós-independência sentiu a necessidade de escolher entre os históricos quem efetivamente se levantou de armas em punho contra o regime colonial como forma para aliviar a pressão psicológica de «menoridade» que recaia sobre os são-tomenses.
Ainda hoje a vida de Amador desperta curiosidade dos investigadores sobretudo devido ao mistério que envolve os motivos pelos quais avançou para a revolta quando o poder das suas forças de combate era residual. Subsistem, por isso, divergências entre os académicos quanto ao seu estatuto. Em geral, os estudiosos apresentam, cada um, opiniões com base em argumentos mais ou menos justificáveis, havendo casos em que manifestamente são questionáveis.
Os estudos mais recentes mostram uma aproximação entre os especialistas sobre a sua origem e o período em que desencadeou a revolta, mas subsiste a confusão sobre a data e forma em que e como foi executado. Também se desconhece as verdadeiras motivações da revolta, mas o que mais parece dividir os investigadores e estes e a opinião geral dos são-tomenses é o que ele, realmente, representa. Isto é, se, efetivamente, foi rei ou estamos perante um mito. Outra questão que deve ser trazida ao debate é o efeito da revolta que ele liderou face à enorme incapacidade “bélica” do seu movimento. Todas estas interrogações deixam em aberto oportunidades para novas investigações sobre a história de Amador que, sobretudo, aos próprios são-tomenses se devem interessar.
A maioria dos estudos sobre Amador baseia-se num manuscrito do Vaticano escrito em italiano, sem data, atribuído à época, e foi publicado em 1953 pelo padre António Brásio na revista Monumenta Missionária Africana. O segundo documento em que o assunto foi tratado, com mais detalhe de pormenor, é o conhecido manuscrito do nativo padre Manuel do Rosário Pinto, que inclui a cópia dum outro que lhe é anterior, de autor desconhecido, redigido em 1732, com o título, História da Ilha de São Tomé. Foi publicado pela primeira vez pelo padre António Ambrósio em 1970, reeditado em Studia, n.º 30-31, Lisboa, 1970, pp. 205-329. Encontra-se na Biblioteca de Ajuda em Lisboa. Estes textos constam do interessante livro do historiador português Arlindo Caldeira, publicado em 2006, citado nas referências bibliográficas deste artigo.
Gerhard Seibert, um alemão, especialista de estudos africanos e dedicado a realidades são-tomenses, apresentou uma comunicação com o título “Rei Amador”, na CACAU – Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias, em São Tomé, em 17 de janeiro de 2011. Terá dito na conferência que a ideia, que tem sido transmitida repetidamente, de Amador como rei dos angolares era um mito uma vez que o próprio Amador se tinha intitulado rei da ilha de S. Tomé. Sobre esta matéria, há muitos outros ilustres autores que chegaram à mesma conclusão, mesmo antes de Seibert. De resto, as principais escolas de história e importantes historiadores portugueses como Isabel Castro Henriques e Arlindo Caldeira já tinham afirmado isto antes.
Seibert foi mal interpretado e enxovalhado por um grupo de são-tomenses e precisou de recorrer à imprensa local, Tela Nón, que difundiu a notícia, para reafirmar a sua opinião e defender a sua honra. Os muitos esforços que fez naquele «debate» online, em que intervieram os outros, Seibert foi sistematicamente maltratado e insultado e mais de noventa por cento dos 70 críticos online do Téla Nón, acusaram-lhe de falsear a História de S. Tomé e Príncipe.
Seibert é professor universitário e investigador de S. Tomé e Príncipe desde o início dos anos noventa do século XX e começou a estudar Amador em 1998, tendo já publicado alguns artigos sobre este tema em 1998, 2005 e 2011. Não estive presente nessa Conferência, mas conheço bem os artigos que Seibert publicou sobre Amador e em parte alguma afirma que esta importante figura histórica de S. Tomé nunca foi rei. E não vejo razão nenhuma para acreditar que tivesse afirmado o contrário de o que escreveu.
O que Seibert escreveu foi exatamente o que afirmara Isabel Castro Henriques em 2000 e Arlindo Caldeira em 2006, entre outros estudiosos: que insistir na ideia de que Amador foi rei dos angolares é um mito que não tem qualquer fundamento e isso desvaloriza a grandeza de Amador como rei da ilha e diminui a importância da História de S. Tomé e Príncipe.
Quem primeiro lançou a confusão de associar Amador a angolares foi Vasconcellos (1918) e, mais tarde, Galvão e Selvagem (1951) e Tenreiro (1961) a reproduziu posteriormente e que autores subsequentes repetiram como sendo uma verdade absoluta.
Acredito que a ideia que Seibert e outros autores recentes transmitiram é a de que Amador era suficientemente enorme para não ser considerado apenas rei dos angolares, mas sim, de todos os nativos da ilha de S. Tomé. A perspetiva divisionista, que caracteriza a ideologia colonialista, vê nele rei dos angolares, o que fragiliza o todo que é a ilha de S. Tomé e diminui a dimensão histórica do país, que é preciso corrigir.
Isabel Castro Henriques afirma que esta tradição de considerar Amador rei dos angolares tornou-se corrente a partir do século XIX, passando a falsa ideia de que existiu uma Monarquia angolar fundada por Amador. A autora utilizou uma fotografia do século XIX, publicada por Almada Negreiros, que ilustra o rei dos angolares, trajado a rigor, para argumentar que a forma como o negro angolar se apresenta na foto, vestido com uma farda que certamente lhe foi dada pelas autoridades portuguesas, é uma orquestração daquelas autoridades para mostrarem o interesse pela integração dos angolares na sociedade colonial em S. Tomé. Insurgindo-se contra esta farsa, Isabel Castro Henriques (2000: 117) acrescenta:
“Não podemos deixar de verificar que esta tradição limita a função majestática de Amador, designado nos documentos quinhentistas como rei da ilha de S. Tomé. Pode ver-se nesta operação a marca ideológica do colonialismo, que só pode aceitar a realeza limitada a um grupo cuja história continua a aparecer como misteriosa, e que não dispunha dos meios sociais, técnicos e financeiros para se opor às autoridades portuguesas. Esta amputação da dimensão do poder de Amador – de Rei da Ilha a Rei dos Angolares -, consagrada na tradição são-tomense, constitui um dos fenómenos mais perturbantes da História de São Tomé e Príncipe”.
Quanto à intervenção de Seibert, aqueles são-tomenses tiveram um entendimento diferente, contrário ao debate de ideias e à refutação argumentativa. É meu entendimento que não precisamos ofender ninguém quando não estamos de acordo com ele. Devemos respeitar as ideias dos outros tanto mais que podemos desconstruí-las apresentando as nossas, sustentadamente. É este o caminho que precisamos percorrer e não o de ofensas, muitas vezes gratuitas, porque diminuem a nossa dimensão intelectual, desafiam a nossa qualidade individual e coletiva e questionam o nosso desenvolvimento.
A verdade sobre Amador deve ser procurada através de trabalhos de investigação e de debates de forma desapaixonada, mesmo tratando-se de um tema sensível para muitos. A verdade histórica tem de se sobrepor às emoções, às ilusões e à fixação de ideias, mas não pode ser explicada, uma vez por todas, como sugerem certas manifestações ainda hoje presentes entre os são-tomenses. E é isto mesmo que proponho ao interessar-me por este tema.
Assim, tal como muitos outros especialistas, baseio-me no pequeno manuscrito do Vaticano, referido à época, não datado, com o título “Relatione uenura dall’ Isola di S. Tomé”, publicado pelo padre António Brásio em 1953 (MMA: III, 521-523) e o manuscrito do padre Rosário Pinto de 1732, que inclui um anterior, que ele acrescenta mais detalhes, publicado pelo padre António Ambrósio em 1970, e interessantes comentários que sobre eles faz Arlindo Caldeira no seu livro Relação do Descobrimento da ilha de São Tomé. Manuel Rosário Pinto Rosário, publicado pelo Centro de História de Além-Mar em 2006.
Tanto o primeiro manuscrito em italiano como o segundo, que parece reproduzir a cópia fiel dum outro que lhe é precedente, têm a chancela da igreja católica, recolhidos e publicados pelos clérigos. No manuscrito do Vaticano, Amador foi qualificado repetidamente como falso rei enquanto o nativo negro padre Manuel do Rosário Pinto descreve os factos na perspetiva dum europeu eurocêntrico. Em qualquer dos casos, a informação disponível tem um peso institucional de ordem religiosa enorme que em nada diminui a sua fidedignidade, mas exige que se contorne os preconceitos do padroado da época que lhe estão subjacentes.
Recorde-se que o Vaticano teve participação ativa ou foi cúmplice da escravização dos africanos durante séculos, no entanto, outras vezes, o padroado insurgia-se contra a sua prática, denunciando-a, como foi o caso do padre António Vieira em sermão religioso na Baía em 1633, quando denunciou energicamente a brutalidade da escravatura na ilha de S. Tomé (Silva, 1958: 77). Por conseguinte, teve neste processo uma posição dúbia o que obriga, em certa medida, à relativização da interpretação dos documentos referidos à época. Por outro lado, aprendemos em direito, história e filosofia, pelo menos nestas áreas de conhecimento, que os documentos não falam por si, dependem do olhar de cada um sobre os mesmos. Isto significa que não basta termos documentos para termos certezas dos acontecimentos ou as suas datas. Os documentos são elaborações humanas suscetíveis de conter falhas, sobretudo em períodos tão recuados em que, particularmente, o rigor dos números não era uma prioridade absoluta.
Os conflitos internos e a revolta de Amador
Em busca de argumentos para explicar a revolta de Amador, Pablo Eyzaguirre (1986: 73), apoiando-se em literaturas de historiadores portugueses, que sustentam que as constantes ameaças de invasão estrangeira, a instabilidade provocada pelas diferentes categorias de escravos presentes na ilha e as infindáveis lutas pelo poder entre as autoridades da Câmara, dos representantes da Coroa e da igreja, retira que que estes conflitos abriram caminho para o declínio da economia do açúcar em S. Tomé. E continuou dizendo que foram os escravos e negros livres que exploraram esta divisão interna que foi muito instrumental na fragilização das plantações de açúcar em S. Tomé e que uma tal divisão favoreceu a revolta de Amador, afirmando que “uma luta entre a autoridade do bispo e do governador esteve na origem da revolta”.
Cunha Matos (1916:16) que, provavelmente, ter-se-á baseado no manuscrito do padre Manuel do Rosário Pinto, ou no seu precedente, sem o citar, foi quem primeiro fez esta afirmação que foi repetida dois anos mais tarde em nota pé de página por Lopes de Lima (1844: xi). Galvão e Selvagem (1951: 211) e muitos outros estudiosos posteriores têm-na repetido sem questionar a verdadeira motivação da revolta, enquanto Arlindo Caldeira (2006) admite não haver uma relação direta de causa e efeito entre os conflitos dos poderes públicos e políticos e a revolta de Amador, devido à relevância da distância temporal entre esses factos. Na verdade, os tais conflitos que dividia o Bispo e o governador, conforme reza o manuscrito em português, atingiram o clímax no dia 26 de Agosto de 1594, com a excomunhão do governador e seus funcionários leais e, portanto, um ano antes do início da revolta de Amador, em 9 de julho de 1595, de acordo com os citados manuscritos.
Os conflitos entre os poderes instituídos na ilha podem ter enfraquecido a máquina repressiva e favorecido a revolta, mas não foram eles que conduziram à crise do açúcar em S. Tomé.
Ao contrário de o que afirmam os estudiosos, não foram as condições internas que determinaram a crise do açúcar e sim fatores externos. Foram as condições de mercado externo que rapidamente mudaram e determinaram a crise do sistema produtivo em S. Tomé cuja oferta não acompanhou minimamente as preferências dos consumidores europeus que, entretanto, passaram a ser mais exigentes por uma melhor qualidade de açúcar que o Brasil e outros territórios tinham começado a oferecer em larga escala e, mesmo assim, a um preço bastante mais elevado que o de S. Tomé.
A baixíssima qualidade do açúcar de S. Tomé, ao longo de todo o período, implicava a sua reduzida cotação nos mercados europeus, e o crescente aumento da oferta do Brasil, de melhor qualidade, arrasaram completamente a pequeníssima economia do açúcar de S. Tomé e colocaram os produtores em enormes dificuldades.
Em 1582, uma arroba de açúcar da Madeira valia 3$000 réis enquanto o de S. Tomé era vendido por apenas $950 réis (Silva: 1958: 85-86) e somente $300 réis em 1592 (Pinheiro, 2012: 37) e, portanto, valia menos de um terço e um décimo, respetivamente. Por outro lado, a produção em S. Tomé nunca atingiu níveis elevados contrariamente à mensagem que muitos procuram passar.
Exceto aquela produção anormal de 800.000 arrobas (cerca de 12.000 toneladas) em 1575 ou 1577, estimada por Hélder Lains e Silva, que é improvável que tenha ocorrido, a produção média, no período de boom, entre 1535 (cerca de 2.025 toneladas) e 1578 (cerca de 2.625 toneladas) foi certamente inferior a 2.250 toneladas por ano[2]. Conseguida, ainda assim, à custa de enormes sacrifícios dos escravos nos engenhos de açúcar. E como era baixíssimo o seu preço no mercado externo, tornava-se, a prazo, inviável a indústria açucareira em S. Tomé, ainda que com o custo do fator trabalho nulo, devido à concorrência dos custos não industriais na formação da oferta. Mesmo sem contar com o dízimo pago à Coroa e de outros tributos incidentes.
Com um máximo de 2.000 europeus na ilha e algumas dezenas de milhares de africanos[3], entre os quais uma significativa percentagem de mestiços (de quase preto a quase branco), é improvável explicar a riqueza dos moradores (europeus) a partir da exploração da economia do açúcar, em todo o período da sua produção. Por conseguinte, a derrocada da indústria de açúcar era inevitável e era apenas uma questão de tempo e não de conflitos sociais domésticos como Eyzaguirre e muitos outros autores afirmam.
O grosso da riqueza gerada pelos moradores em S. Tomé, no século XVI, tem de ser explicada pelos negócios relacionados com o tráfico de escravatura do que com a indústria de açúcar, assunto que muitos procuram evitar, provavelmente, por ser incómodo. Um negócio que foi florescente até 1614 quando o comércio de escravos passou a ser feito diretamente a partir do porto de Luanda, que desviou esse comércio de S. Tomé, para o novo mundo e foi perdendo gradualmente a sua importância relativa ao longo dos tempos e se agravou, posteriormente, com o aumento da fiscalização de navios ingleses que contestavam uma tal prática.
Por conseguinte, a crise da economia do açúcar foi determinada pelas condições do mercado externo em consequência da sua má qualidade e foi disfarçada pelos importantes rendimentos provenientes do negócio do tráfico negreiro, enquanto este foi essencial. Por outro lado, a reduzida dimensão do território e as características do seu relevo impuseram limitações às quantidades produzidas. Situação que se repetiria dois séculos e meio mais tarde com as culturas do café e do cacau.
A ideia de desenvolvimento económico com base na agricultura é má para os pequenos territórios insulares e desastrosa quando implementada através do sistema das grandes plantações, devido à importância dos custos fixos nos custos unitários de produção acabada, porque é muito pequena a dimensão das quantidades produzidas. Prestam-se melhor a um sistema de produção do tipo familiar em que os custos fixos são irrelevantes.
Os pequenos territórios insulares e isolados não têm vantagens competitivas em economia agrícola ou agroindustrial, devido à pequenez do seu território (pequena dimensão) e os elevados custos de transporte impostos pela insularidade e isolamento. Estes territórios têm uma viabilidade precária dependente de fluxos externos e, em termos de desenvolvimento, a sua viabilidade é posta em causa quando apostam na economia agrícola, devido à rigidez da pequena dimensão. Apenas aqueles pequenos territórios insulares que dispõem dum recurso natural valioso, através do qual recebem uma renda vitalícia, terão uma situação menos desfavorável. Porém, os recursos naturais não são (infinitamente) renováveis, pelo que, em qualquer dos casos, a orientação económica deve guiar-se para atividades de prestação de serviços e economia das pescas onde possuem vantagens comparativas. Doutro modo, tornar-se-ão inviáveis do ponto de vista económico e fortemente dependentes de ajudas externas, como é hoje o caso de S. Tomé e Príncipe. Por conseguinte, não parece ter fundamento sustentar que os europeus, ou outros, fizeram fortunas em S. Tomé, no século XVI, através da produção e comércio de açúcar. É mais provável que tenha sido o tráfico negreiro que os enriqueceu e não a economia agroindustrial de açúcar.
Com a crise da indústria de açúcar, a mão-de-obra tornou-se relativamente mais abundante e também mais disponível para o conflito grupal. Interessa, agora, saber quem era Amador, angolar ou escravo cativo? Esta questão constitui tema do parágrafo seguinte.
Origem de Amador
Muitos historiadores referem-se a Amador como um negro angolar que chefiou a revolta dos rebeldes angolares contra os brancos na ilha de S. Tomé e fez-se aclamar pelos seus apoiantes rei de S. Tomé. Mas nem Cunha Matos nem Lopes de Lima ou Galvão e Selvagem associam Amador à etnia angolar. O primeiro escritor que parece ter estabelecido uma ligação direta de Amador aos angolares foi Vasconcellos (1918: 9) ao referir-se que “… pelo êxodo dos agricultores para o Brasil, por causa das atrocidades dos angolares revoltados, sob o mando do negro Amador …”, na sua obra Colónias Portuguesas, S. Tomé e Príncipe: Estudo Elementar de geografia física, económica e política.
Por coincidência ou não, quarenta e três anos mais tarde, após a narrativa de Ernesto Vasconcellos, Tenreiro (1961: 73) viria a produzir afirmação idêntica ao escrever que “De 1595 a 1596, esta [ilha de S. Tomé] chega mesmo a cair nas mãos dos angolares, chefiados pela figura, já lendária, de Amador.” Importa dizer que Tenreiro não cita Vasconcellos, mas teve acesso a Galvão e Selvagem.
Depois da obra de Tenreiro, escritores portugueses e estrangeiros, os quais não tiveram acesso a nenhum dos manuscritos referidos, têm repetido esta narrativa[4]. A confusão surge porque Amador chefiou a rebelião com a participação de escravos e o envolvimento de angolares e daí muitos, entre os quais a generalidade dos são-tomenses, acreditam que Amador era angolar ao invés de um escravo cativo que de facto era.
No manuscrito do vaticano, Amador é descrito como um negro escravo de roça, no tempo em que governava a ilha D. Fernando de Meneses e é considerado um negro escravo cativo no manuscrito de Rosário Pinto. Por conseguinte, com base nesses documentos, que até ao momento constituem as únicas fontes primárias, se conclui, sem dificuldades, que Amador era, de facto, um escravo negro e não um angolar. E não sendo ele angolar, porque não era, se conclui também que é uma pura fantasia considerar-lhe rei dos angolares. Por conseguinte, a insistência nesta lenda de Amador como rei dos angolares diminui a importância da revolta que travou naquele período e prejudica o conhecimento da verdade sobre a história de S. Tomé.
Já vimos que Amador não foi rei dos angolares, agora interessa saber se ele foi ou não rei da ilha de S. Tomé. Isto é, põe-se a questão de saber se, politicamente, pode ele ser considerado rei de S. Tomé, assunto que discutiremos no parágrafo seguinte.
Amador, rei de S. Tomé?
A descrição da revolta até à morte do seu comandante ajuda a compreender melhor o estatuto de Amador.
Tanto o manuscrito do Vaticano como o de Rosário Pinto, que contém um anterior que ele não menciona a fonte, afirmam que o levantamento chefiado por Amador aconteceu no dia 9 de Julho de 1595. De acordo com o manuscrito de Rosário Pinto, que pormenoriza detalhes sobre a revolta, ela foi planeada em torno de três figuras principais: a do escravo Amador, que se assumiu como capitão; o escravo Lázaro que era o segundo capitão e o escravo Domingos Preto, terceiro da hierarquia, com a patente de alferes, todos escravos negros. Este trio, comandado por Amador, conseguiu atrair muitos apoiantes negros escravos e angolares e tinha por objetivo libertar todos os escravos cativos e exercer a governação da ilha de forma efetiva.
No dia 9 de julho de 1595, o grupo deslocou-se à Trindade, onde matou alguns brancos na igreja e um outro de nome Pedro Álvaro Freire, na roça deste. Da Trindade, o grupo seguiu em direção à cidade, pelo sueste, passando por Pedroma, Budo Budo, Santana, Praia Melão e Pantufo (Eyzaguirre), atraindo mais aderentes para a sua causa.
No dia 11 de julho, queimaram os engenhos e fazendas de Dalaguê e alguns em Uba Budo e Praia Preta. Capturaram ali escravos espingardeiros que os levaram, provavelmente, para serem utilizados no combate. É importante notar que, já nessa época, as roças, sobretudo as mais importantes, funcionavam como um Estado dentro do Estado, com as suas próprias forças.
Naquele mesmo dia (11 de julho), seguiram para Pantufo onde queimaram o engenho que ali existia. Face ao avolumar das destruições, o governador, com a anuência do Bispo, enviou homens armados ao Pantufo a fim de conterem os revoltosos, mas estes conseguiram escapar-se e seguiram para a cidade, junto à Feira Velha.
O Bispo e os seus clérigos, o governador e algumas pessoas foram ao encontro dos revoltosos e do qual resultaram três homens brancos mortos tendo Amador e os seus homens batido em retirada.
No dia 12 de Julho, o grupo incendiou engenhos em Água Sabão e na roça Alemanha que, na altura, era administrada por João Barbosa da Cunha, marido da bisneta de Ana de Chaves.
No dia 14 de julho, os revoltosos, muito mal-armados, provavelmente sem armas de fogo, atacaram a cidade, mas foram rapidamente vencidos e Amador e os seus homens puseram-se uma vez mais em fuga. Deste embate, resultaram baixas não quantificas do lado de Amador, provavelmente na ordem das centenas, e do lado do governo, apenas um negro escravo foi morto. A partir deste desaire, Amador restruturou as suas forças em cinco frentes estratégicas, próximas da cidade, cada uma das quais, comandada por um capitão, com vista a cercá-la: de caminho de Madre de Deus até ao Cubelo era comandada por ele próprio; Rua de Santo António; mato de Bois; caminho da Conceição; e Rua de S. João. Mas assim que viram as forças armadas, muito bem equipadas, a marcharem em sua direção, bateram em retirada.
No dia 23 de julho houve uma escaramuça na Fazenda de Água Grande onde morreu um apoiante da revolta. Esta morte causou fúria a Amador e aos seus apoiantes que decidiram responder.
Tanto Amador como os poderes instituídos prepararam-se para o combate que teve lugar no dia 28 de julho. O confronto dos desiguais durou apenas quatro horas, o tempo suficiente para que 200 homens de Amador fossem abatidos, houve muitos feridos e prisioneiros entre os quais um capitão (Adão) que foi enforcado. Da parte do governo houve apenas um morto, provavelmente um negro. Amador e os restantes homens que se escaparam fugiram, mas rapidamente foram abandonando o líder, capitão e rei que ficou sozinho. Acabou traído por alguns dos seus antigos apoiantes que o amarraram e o levaram preso à cidade onde, depois de lhe terem sido amputadas as mãos, um tipo de castigo muito usual na época para os escravos rebeldes, foi esquartejado e enforcado. De acordo com o manuscrito do Vaticano, Amador foi morto no dia 14 de Agosto de 1595.
A revolta de Amador tem dado lugar a muitas reflexões sobretudo quanto às suas motivações. A generalidade dos historiadores tende a considerar que foi a disputa de poderes entre a autoridade do bispo e a do governador que esteve na base da revolta.
Afirmam que o infindável conflito entre esses poderes tinha dividido a ilha em dois sectores em função da influência social de cada uma das lideranças. Sustentam que os brancos e mestiços abastados se colocaram do lado do governador enquanto os escravos e negros livres (os mais desfavorecidos e discriminados social, económica e politicamente) se puseram ao lado do bispo. E na medida em que os fazendeiros eram senhores dos escravos, muitos deles eram utilizados como milícias nas contendas que opuseram uns e outros e os poderes instituídos na ilha. A revolta de Yon Gato, que falarei noutro lugar, constitui um exemplo que parece ilustrar esta situação. Mas também a igreja tinha seus próprios escravos. Por conseguinte, era normal os fazendeiros armarem os seus escravos para apoiarem lutas políticas entre fações e administrações rivais.
Eyzaguirre, baseando-se no manuscrito de Rosário Pinto, acredita que foi num tal contexto que Amador Vieira, escravo dum funcionário menor da administração pública chamado Bernardo Vieira (os escravos depois de batizados adotavam o apelido do seu senhor), emergiu como líder das forças populares em apoio ao bispo e transformou uma luta entre autoridades religiosas e civis numa rebelião de escravos e negros. Afirma ele que a rebelião procurou destruir o sistema de escravatura e plantações de açúcar e exterminar os brancos e mulatos filhos dos brancos que mais se enriqueceram com o comércio de escravo e de açúcar.
Como já referi mais atrás, não parece haver uma relação de causa e efeito entre o eventual apoio ao bispo em 1594 e a revolta ocorrida um ano mais tarde. É mais provável que Amador planeou a revolta para libertar os escravos da exploração dos brancos e mulatos do sistema que os oprimia e nada tendo que ver com os conflitos institucionais endémicos na ilha entre a igreja e o governo, tanto mais que o primeiro lugar escolhido para assinalar a revolta foi justamente uma igreja onde estariam brancos e depois foram destruir as bases económicas entre Trindade e cidade. Pode então dizer-se que a revolta tinha uma natureza racial mas, na realidade, era de ordem económica pois os brancos e mulatos abastados eram quem tinha o poder de dominação e oprimia os desfavorecidos para mais se enriquecerem. Por conseguinte, o levantamento de Amador foi contra esse sistema que estava instituído e que oprimia gente da sua cor.
A sua revolta tinha um objetivo político amplo – a libertação do seu povo da exploração colonial e uma vez posto em marcha o processo, assumiu-se como rei de S. Tomé.
Para o Vaticano, um político só podia merecer o título de rei se tivesse o seu reconhecimento. Ora, o Vaticano não viu nele um político, mas, sim, um homem revoltado que se intitulou rei. Consequentemente, para o Vaticano, ele era um falso rei, tal como consta repetidamente no manuscrito em italiano.
Contudo, para além da posição institucional do Vaticano, que é compreensível devido às alianças e compromissos que, na época, mantinha com Portugal, tem de se perceber qual o sentimento dos são-tomenses em relação à figura de Amador, que se sabe, é contrária ao do Vaticano e dos autores que sustentam essa tese.
Sabe-se, hoje, que as evidências históricas mostram que Amador era um escravo negro da cidade e, por conseguinte, não angolar, merece ficar na história, sobretudo para memórias futuras, que foi rei dos são-tomenses, e não como, erradamente, o primeiro governo da República o considerou, rei dos angolares, reduzindo o seu verdadeiro estatuto. Portanto, parece ser de justiça atribuir a Amador o título de rei de S. Tomé e não apenas rei dos angolares. Título que ele assumiu no dia 14 de Julho de 1595 quando afirmou que era, a partir de então, capitão-general de guerra e rei absoluto com plenos poderes para libertar todos os escravos e criar títulos da nobreza para a sua corte.
Para alguns, ele chegou a ter nas suas fileiras 5.000 combatentes, um número que parece excessivo quando olhamos para a pequenez da ilha e zonas em que decorreram os confrontos, cerca de 1/14 da área total da ilha de S. Tomé.
Durante o curto tempo que durou a revolta, apenas um número muito reduzido de brancos foi abatido (certamente um número inferior a 5) enquanto do lado de Amador foram abatidos a tiro ou enforcados muitas centenas de homens.
Quanto à data da sua morte, parece ter ocorrido no dia 14 de agosto de 1595, de acordo com o manuscrito do Vaticano. Embora o manuscrito de Rosário Pinto nada diz quanto à data em que foi enforcado, afirma que o confronto final se travou no dia 28 de julho e que a desmobilização dos seus homens se iniciou no dia seguinte e, que sozinho, Amador foi esconder-se na parte ocidental da ilha, fora do alcance das forças armadas do governo. Mas foi traído por uma pessoa da sua confiança, que se presume tenha sido em troca dum suborno, já que os europeus estavam determinados a eliminá-lo rapidamente para assinalarem o fim definitivo da revolta. Foi preso e amarrado com cordas a mando desse seu amigo e levado à cidade para autoridades portuguesas. O manuscrito do Vaticano diz que a revolta terminou no dia 29 de julho quando se travou o último confronto.
Com base nessas duas fontes, se conclui que faz muito sentido que Amador tivesse sido preso dias depois do fim dos confrontos e enforcado logo a seguir. Por conseguinte, parece-me pacífico considerar o dia 14 de agosto de 1595 como a data em que o rei Amador foi morto. A data de 4 de janeiro de 1596, indicada por Cunha Matos (1963: 110), no seu livro com o título Compêndio Histórico das Possessões de Portugal na África, publicado no Rio de Janeiro em 1963, como aquela em que Amador foi morto, não tem qualquer fundamento e, como tal, tem de ser ignorada para o bem da História de S. Tomé e Príncipe.
Amador, herói ou aventureiro?
Interessa saber se a revolta comandada por Amador valeu ou não à pena. Foi bem pensada, teve o impacto esperado, ou tratou-se, simplesmente, de um ato de um aventureiro como o regime de então o considerou?
No início, os poderes instituídos não deram importância à revolta de Amador e somente quando o grupo chegou ao Pantufo e ali fez estragos o governador decidiu reagir para os conter. Mas, por essa altura, já estavam a caminho da cidade e foram dar à Feira Velha e foi daí que os europeus ficaram assustados, não pela força do grupo, que era nenhuma, mas pela sua dimensão e por estarem em fúria.
No manuscrito em italiano, o número de mortos dos revoltosos, no confronto do dia 14 de julho, ascendeu a mais de 300 e apenas 3 ou 4 mortos do lado do poder instituído na ilha. Recorde-se que o manuscrito de Rosário Pinto fala num número de negros mortos que não foi possível contabilizar. E no confronto final, o primeiro documento diz que mais de 500 negros foram abatidos, a tiro, e enforcado mais de 100, enquanto o de Rosário Pinto menciona 200 baixas mortais entre os apoiantes da revolta.
Apesar da divergência dos números nos documentos citados, nada nos garante que são rigorosos, não deixa de ser muito significativo o número de baixas dos revoltosos em “combate”, quando comparado com o da parte contrária: apenas um número não superior a 5 mortos entre brancos e negros. Esta enorme desproporção sugere que esses confrontos mais parecem massacres do que propriamente uma guerra.
Dum lado, estava Amador com os seus muitos apoiantes, provavelmente não mais de 4.000, “desarmados”, munidos de arcos e flechas, paus e catanas e, do outro lado, uma força minoritária em termos de efetivos, mas fortemente armada com armas de fogo e artilharia.
Os confrontos duraram poucas horas (meio dia ou cerca de 4 horas), tempo suficiente para que fossem dizimados os revoltosos. Na verdade, poucos minutos são suficientes para que uma vintena de homens, fortemente armados, conseguisse abater um número considerável de “indefesos”.
A questão que aqui se pode colocar é a de saber se Amador tinha ou não a perfeita consciência da sua enorme desvantagem? Sabendo que já no dia 14 de julho tinha sofrido uma pesadíssima baixa, por que razão continuou insistindo na revolta? Por que razão não optou ele próprio por morreu nos confrontos, revelando isso sim coragem e valentia, ao invés de fuga e do enforcamento? Podem, em consciência moral e intelectual e orgulhosamente os são-tomenses assumir Amador como seu rei? Admito que sim, sobretudo porque teve a ideia de pôr em marcha um processo para libertar os escravos negros da dureza da exploração do regime esclavagista na ilha, embora à custa de muitas vidas humanas, provavelmente, acima de um milhar de escravos negros, em tão poucos dias de confrontos e, por outro lado, não logrou alcançar nenhum dos objetivos que propôs.
Dia 4 de Janeiro: Feriado nacional?
Logo a seguir à independência, em 12 de julho de 1975, as novas autoridades locais procuraram rapidamente eleger figuras heroicas de resistência ao colonialismo português no território. Pretendiam com isso silenciar a voz daqueles que diziam que os são-tomenses nada fizeram para merecerem a independência e que ela lhes tinha caído do céu.
Na verdade, nenhum dos movimentos nacionalistas criados para encetar formas de luta contra a presença portuguesa desencadeou ações armadas no território, contrariamente à generalidade dos países africanos, entre muitos outros. Por conseguinte, nem o Comité de Libertação de S. Tomé e Príncipe (CLSTP), criado em Setembro de 1960, nem o Movimento de Libertação de S. Tomé e Príncipe (MLSTP), que emergiu do anterior em Julho de 1972, realizaram ações concretas nas ilhas e poucos são-tomenses sabiam da sua existência (Espírito Santo, 2008). Por conseguinte, para mostrarem que tiveram heróis que lutaram pela libertação do território contra a presença europeia, decidiram escolher o antigo negro escravo Amador e o mestiço abastado João Rodrigues Gato, mais conhecido, na época, por Yon Gato. Muitos pesam, erradamente, que foram as suas ações e, sobretudo, a revolta de Amador que conduziu a retirada dos europeus e mulatos legítimos para o Brasil. Já expliquei anteriormente que não foram os conflitos internos e sim a crise económica que determinou a fuga para o Brasil.
Pode, então, interrogar-se por que razão a escolha dos governantes pós-independência recaiu sobre aquelas duas figuras dum passado tão longínquo, em lugar duma figura mais recente, nomeadamente do século XIX ou XX? A resposta é simples: os diferentes grupos raciais presentes no arquipélago, exceto o dos europeus que tinha uma estrutura organizativa, não estavam organizados para a libertação do território e por isso não existiu uma tal figura e daí que houve que recorrer àqueles revoltosos, tomando-os como símbolos da luta pela libertação. Essa falta de poder organizativo constitui uma característica fundamental dos forros a qual se reflete até hoje não sua incapacidade de juntos, promoverem o desenvolvimento do país.
A escolha permitiu silenciar os críticos externos que questionavam a forma singular como os são-tomenses chegaram à independência, mas era preciso fixar e perpetuar essa escolha, pelo que se punha em questão a escolha da data para a celebração da morte de pelo menos uma daquelas figuras. Escolhido Amador, tinha-se que descobrir ou inventar a data da sua morte, tanto mais que foi considerado desde o início do período pós-independência a figura mais importante do arquipélago durante todo o regime colonial. Por outro lado, já circulava, em substituição do escudo são-tomense introduzido pelos portugueses, a moeda são-tomense Dobras, criada pelo Decreto – Lei n.º 23/76, de 15 de julho, em notas de 50, 100, 500 e 1000, desde setembro de 1977, com a esfinge de Amador. Por conseguinte, havia uma pressão das autoridades para a escolha de uma data e um feriado nacional para comemorar o Dia de Amador.
Um projeto de Lei, com o número 06/VII/03, de autoria de Albertino Bragança, conduziu à consagração do dia 4 de Janeiro como “Dia de Amador”, para assinalar a data da sua morte, e, simultaneamente, à institucionalização de feriado nacional, o qual passou a vigorar a partir de 4 de janeiro de 2005. Desde então, tem sido celebrado esse dia como feriado nacional em comemoração à data em que as autoridades são-tomenses acreditam que Amador foi morto. O acontecimento tem sido realizado com a deposição de uma coroa de flores e fazem-se importantes discursos de circunstâncias por destacadas individualidades políticas do país.
O principal entusiasta da iniciativa foi Fradique de Menezes – o Presidente das «boas causas» -, que, na época, era o Presidente da República. Ele não queria terminar o seu primeiro mandato sem concluir esse longo processo de escolha da data comemorativa da morte do rei Amador que já se arrastava há cerca de três décadas.
Como mostrei mais atrás, Amador foi enforcado no dia 14 de agosto de 1595 e não no dia 4 de janeiro de 1596 como, erradamente, tem sido comemorado. O manuscrito do Vaticano, muitas vezes referido neste artigo, prova isto mesmo. Por outro lado, o texto de Rosário Pinto, mesmo omitindo a data da sua morte, permite admitir que terá sido preso, e consequentemente enforcado, alguns dias após o fim dos confrontos que, como foi provado, ocorreu no dia 29 de julho de 1595. Por conseguinte, tem de se aceitar a data de 14 de agosto de 1595 como aquela em que Amador foi morto e não a outra que não tem qualquer fundamento.
Sabendo que Amador não morreu no dia 4 de janeiro de 1596, pode, então, perguntar-se por que razão as autoridades são-tomenses escolheram essa data? E por que razão continuam insistindo neste erro grosseiro quando se sabe que existem informação e estudos recentes[5] que provam a verdadeira data da sua morte? A confusão vem de Cunha Matos, o historiador português que, no seu livro de 1836, publicado em 1963, afirmou que Amador morreu no dia 4 de janeiro de 1596, sem citar a fonte nem apresentar qualquer prova de sustentação.
Alguém entre os políticos são-tomenses teve acesso ao tal livro de Cunha Matos onde na página 110 ele afirma, erradamente, a data da morte de Amador. E sem a questionarem aceitaram-na como verdadeira. O que é surpreendente é o facto de as autoridades de S. Tomé e Príncipe terem levado demasiado tempo (cerca de 30 anos após a independência) para encontrarem uma data para a comemoração da morte do seu “herói” e ser ela falsa, o que levanta questões da moral e da ética na política. Não é aceitável mentir-se ao povo sobre a sua História. Além do mais, isso desacredita a política em S. Tomé e Príncipe e as suas elites.
Em 2009 foi erguido um busto no lado direito do pequeno jardim do Arquivo Nacional, na cidade de S. Tomé, feito em madeira local, com traços que supostamente teria Amador um pouco antes de ter sido morto. Contudo, se a imagem que consta do livro de Isabel Castro Henriques (2000: 118), que mostra os castigos que Amador sofreu antes de ser enforcado, é autêntica, então, estamos perante uma falsificação da sua imagem pelas autoridades são-tomenses, o que, a ser verdade, constitui mais uma violação grave da História do país. Na imagem do dito livro, Amador aparenta ser um homem ainda novo, com idade certamente inferior a 40 anos e uma abundância de cabelos, mostrando que se tratava de um jovem irreverente, que se tornou líder de uma causa, e não um homem de meia-idade. Na verdade, não existe nenhuma gravura histórica do verdadeiro Amador. A imagem que consta das notas «dobras» em circulação e no busto foi uma criação pós-independência de um desenhador são-tomense (Pina).
Com a exibição do seu busto, as autoridades locais procuraram dar maior relevo ao simbolismo histórico que representa a figura lendária de Amador. De acordo com as autoridades, esta medida era uma forma de fixar e preservar a memória daquele que se levantou contra a presença colonial em defesa da libertação de todos os escravos da ilha de S. Tomé.
Em Novembro de 2014, deu-se conta de que o busto inicial tinha sido substituído por um outro, com características diferentes, não se sabendo por ordem de quem nem a razão da substituição. Mas pode-se admitir que, provavelmente, se tratou de uma forma de manifestação pela reposição da verdade da História de S. Tomé e Príncipe.
Notas finais
Em resumo, se pode afirmar que a revolta de Amador e a forma brutal como foi vencido mostram que:
1 – A igreja católica em S. Tomé participou ativamente com os seus clérigos e outros homens ao lado do governo contra as pretensões de Amador, pelo que é falso o argumento segundo o qual a igreja católica apoiava os negros. Em alguns momentos isso foi verdade, mas não sistematicamente como alguns historiadores fazem crer. Durante muito tempo, a igreja colocou-se ao lado do regime escravocrata promovendo ou dando cobertura ao tráfico de escravatura africana. Por outro lado, quando os negros se punham do lado da igreja contra o governo escolhiam o mal menor.
2 – Os conflitos entre os poderes instituídos na ilha (governo e igreja) não eram suficientes para fragilizar o poder das forças do regime contra as revoltas internas dos negros, ou dos mestiços.
3 – Enquanto sistema, o regime pré-capitalista precisou da igreja para cumprir os seus propósitos, mesmo quando deixou de estar sob o seu domínio. A igreja e governo eram dois dos três pilares em que assentavam a dominação e exploração dos escravos em S. Tomé. O terceiro pilar era constituído por aqueles roceiros afetos ao regime, por sinal, os mais poderosos e traficantes de escravos.
4 – Muitos escritores, entre os quais, Francisco Tenreiro, fazem crer que o regime de trabalho em S. Tomé no século XVI, e mesmo após, era de relativa liberdade dando a ideia que os negros viviam em quase total liberdade ou mesmo em democracia. Ora isso contraria os muitos levantamentos dos negros, principalmente em todo o século XVI, e denúncias de alguns padres sobre a extrema violência de trabalho escravo em S. Tomé, como Lains e Silva bem o referiu. Mesmo aqueles negros que, formalmente, eram livres eram, na prática, escravos. Os autores que escolheram o modelo racial para explicar a história de S. Tomé e Príncipe, no período colonial, apresentam uma narrativa que se afasta da realidade. A análise que privilegia a ótica do regime parece-me mais adequada do que a racial porque esta última limita o campo da abordagem e condiciona os investigadores a interpretar o regime de trabalho escravo em S. Tomé de forma muito branda e, portanto, enviesada da realidade.
5 – Embora Amador se tenha revoltado contra brancos e mulatos abastados, filhos diretos dos brancos e negras, em boa verdade foi contra o regime que ele e os seus homens se levantaram. A confusão surge porque o regime estava representado justamente por brancos e mulatos abastados, levando a supor que se tratava de uma luta racial. Foi contra o regime esclavagista pré-capitalista, que dominava e depauperava a mão-de-obra escrava, que eles se levantaram e não propriamente contra uma raça. Caso os brancos, mulatos e negros estivessem em mesmo pé de igualdade e onde a riqueza fosse gerada de forma lícita sem a exploração de uns por outros, nem as brutalidades, os levantamentos não teriam ocorrido. Por conseguinte, não é a raça em si que deve ser o centro da abordagem, mas sim o regime de exploração que lhe estava subjacente e, neste caso, apenas os que constituíam o regime deviam ser considerados e não o todo.
6 – Nos pequenos territórios insulares isolados em que não há um recurso natural valioso, gerador de rendas vitalícias, como era (e é) o exemplo de S. Tomé e Príncipe, é pouco provável que alguém consiga obter uma grande fortuna de forma sustentada no tempo através de negócios lícitos. Pode durante alguns anos, mas gradualmente a riqueza acumulada tenderá a diluir-se nos compromissos futuros, devido aos constrangimentos específicos da pequena dimensão e isolamento. Acredito que foram as atividades ilícitas de tráfico de escravatura a fonte que gerou o enriquecimento dos europeus na ilha de S. Tomé e não a economia do açúcar como muitos historiadores afirmam.
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[1] Houve duas tentativas de povoamento anteriores que falharam. A primeira ocorreu em 1486 com o donatário João de Paiva e a segunda foi em 1490 com João Pereira.
[2] A segunda metade do século XVI foi marcada por uma produção flutuante com clara tendência para o declínio.
[3] Ambrósio (1984: 179) afirma que havia por essa altura 3.000 brancos e 100.000 negros na ilha de S. Tomé. Pablo Eyzaguirre (1986: 79) refere a 100.000 pessoas, incluindo 3.000 brancos e diz que entre 1530 e 1574 havia 2.000 brancos. Cunha Matos (1836) parece ter-se sido o primeiro historiador que apresentou um número tão grande de população em S. Tomé naquele período de maior crescimento económico. Hélder Lains e Silva (1958: 71) estimou a presença de 3.000 a 3.500 moradores em S. Tomé no século XVI, enquanto Garfield (1992: 80) apresenta uma estimativa não superior a 12.000 escravos. Por conseguinte, não há aproximação entre os investigadores quanto à dimensão da população de S. Tomé e Príncipe naquele período. Os estudos recentes mostram uma grande disparidade de valores da população embora tendem a apresentar números bastante mais reduzidos, pelo que continua em aberto o estudo da população de S. Tomé e Príncipe no século XVI e também nos séculos XVII e XVIII. Esta questão gerou um grande debate entre mim e Gerhard Seibert em Setembro de 2017, que até parecia dividir-nos. Ele publicou um artigo com o título São Tomé’s Great Slave Revolt of 1595: Background, Consequences and Misperceptions of One of the Largest Slave Uprising in Atlantic History, publicado in Portuguese Studies Review 18 (2) (2011) 29-50. Neste artigo, Gerhard baseou-se num trabalho de Arlindo Caldeira de 2008, e escreveu que mesmo no período de maior dinamismo da economia de açúcar, como em 1570, a população branca na ilha de S. Tomé certamente nunca chegou a ter mais de 500 pessoas. Eu discordei totalmente dele lembrando-lhe que existiram na ilha pelo menos 600 judeus (que não eram pretos nem mestiços) e algumas centenas de degredados portugueses além de outros brancos que formaram a estrutura do regime colonial esclavagista na ilha, entre os quais, os membros da administração, do padroado e roceiros. Por outro lado, era essencial uma dimensão mínima da população do grupo social dominante para fazer funcionar o regime. Doutra forma, tinha-se abortado imediatamente. E entre os membros da estrutura social dominante tem de se considerar também os que são não ativos, nomeadamente as crianças, as mulheres e os inválidos pelo que me parece indefensável o número de 500 num período de expansão económica. É preciso também cuidar que a população negra do arquipélago não era de reprodução, mas sim de importação pelo que era muito fácil a sua multiplicação, como também veio a verificar-se nos séculos XIX e XX com as culturas de café e cacau. Por conseguinte, embora seja questionável a dimensão da população indicada em Ambrósio, tanto negra como branca, não vejo razões sustentáveis para escolher um número tão reduzido como sugere Gerhard. O que é importante é que se realizem investigações isentas de tentações tendenciosas tanto da parte dos estudiosos africanos como da parte dos não africanos porque isso prejudica a verdadeira História de S. Tomé e Príncipe. Sobre a população, discutirei noutro lugar onde procurarei calcular as minhas próprias estimativas para o referido período.
[4] Entre muitos outros que reproduzem esta afirmação constam Jorge da Costa Oliveira e Dominique Gallet.
[5] Ver Caldeira (2006) ou Seibert (2011).