Artigo – Contenção de gastos: confiança ou ideologia?

Por Fernando de Aquino – Coordenador da Comissão de Política Econômica do Cofecon e doutor em Economia pela UnB.

Artigo originalmente publicado no Jornal GGN – https://jornalggn.com.br/artigos/contencao-de-gastos-confianca-ou-ideologia-por-fernando-de-aquino/

 

Paul Krugman, prestigiado Nobel em Economia norte-americano, usou uma alegoria para criticar os economistas defensores da chamada “contração fiscal expansionista”, segundo a qual eles acreditariam que, se o governo cortasse gastos para controlar seu endividamento, uma fadinha da confiança encantaria os agentes privados fazendo com que aumentassem seu consumo e investimentos. Joseph Stiglitz, outro prestigiado Nobel em Economia, tem insistido que não há evidências de que o endividamento público desestimule o crescimento econômico. Antes o contrário, reduções nos níveis de atividade diminuem a arrecadação elevando a necessidade de financiamento com endividamento.

Muitos outros economistas, inclusive do próprio FMI, têm questionado essa estratégia, que despreza as condições de demanda efetiva sobre os produtos da própria empresa como determinante da produção e investimento de cada uma. Priorizam a estabilização e possível redução do endividamento público, como se efeitos nocivos à economia já estivessem acontecendo ou prestes a acontecer. Ainda que os limites do endividamento público continuem bastante controversos, não seria nesse momento de combate à pandemia e aos seus efeitos sobre a ocupação e a demanda, com todas as nações elevando massivamente seus gastos públicos para amenizar a geração de recursos ociosos, que tais limites estariam em risco.

Mesmo nessa conjuntura, o governo continua a fazer de tudo para conter gastos públicos, numa política seguida desde 2015, com Joaquim Levy no comando da economia, de efeitos nefastos sobre a atividade econômica. Tal histórico leva a questionar em que medida essa contenção seria para incentivar o crescimento econômico. Nesse sentido, muito elucidativa foi uma manifestação de Paul Samuelson, principal artífice da “síntese neoclássica” – incorporação de contribuições de Keynes à teoria econômica dos manuais – já em 1995, no filme John Maynard Keynes: Life / Ideas / Legacy, de Mark Blaug, reconhecendo que “há um elemento de verdade na necessidade da superstição de que o orçamento deve ser equilibrado o tempo todo. Uma vez desmascarada, perde-se uma das âncoras que toda sociedade deve ter contra gastos fora de controle. Deve haver disciplina na alocação de recursos ou você terá caos anarquista e ineficiência” [tradução livre].

Observe-se que Samuelson reconhece como superstição a exigência dos gastos públicos sempre se limitarem à receita tributária. Assim mesmo, ele é favorável à manutenção de tal superstição, como uma forma de inibir caos anarquista e ineficiência. É possível que os atuais membros da equipe econômica não considerem superstição os perigos do aumento do endividamento público em qualquer circunstância, do ponto de vista macroeconômico, como fonte de inflação e estagnação. Contudo, de um ponto de vista microeconômico, de eficiência alocativa, por certo estão fechados com Samuelson.

Esse seria o aspecto ideológico da insana contenção dos gastos públicos, até em uma conjuntura como a atual, de risco de morte descontrolado e colapso da atividade econômica. É possível que a equipe econômica reconheça que suas elevações neste momento seria a forma mais rápida e robusta de recuperação da atividade econômica e também admita a ocorrência de posterior geração de receitas tributárias para financiá-los. Ainda assim, preferem não adotar essa estratégia, por elevar a participação do setor público na economia. Cultivam a ideologia de que nada com o setor público vale à pena. Sempre haveria mais desperdícios, mais desvios, mais favorecimentos, menos ganhos de qualidade e produtividade. Por isso, a economia se tornaria mais eficiente incentivando aumentos no “PIB privado” e diminuições no “PIB público”.

Em termos macroeconômicos, a “contração fiscal expansionista” pode não contribuir para o crescimento, mas não evita que, em algum momento, mecanismos do próprio sistema econômico, como redução do endividamento de famílias e empresas, acumulação de necessidades e desejos, queda dos preços dos salários, aluguéis e equipamentos, reativem a produção e os investimentos. Em termos microeconômicos, o legado para a estrutura da economia é mais permanente e bem diferente do descrito em “modelos de equilíbrio geral” que pontificaram na grande onda neoliberal. Ao invés de produção de máxima quantidade e qualidade com os recursos escassos todos empregados e remunerados conforme sua produtividade, aumento de desigualdade, pobreza e exclusão social.

No mundo real, não se conhece casos de desenvolvimento sócio econômico sem participação ativa do Estado. A Inglaterra partiu na frente, se valendo de protecionismo a manufaturas holandesas no século XVI. Os EUA, a grande nação liberal, tiveram vários episódios de ativismo estatal, como no seu início, com as políticas de Hamilton, e com os vultosos gastos públicos de sempre em pesquisa científica e tecnológica, com destaque de projetos militares de grande aplicação civil. O Chile, mesmo perdendo sua condição de menina dos olhos do neoliberalismo, permanece como referência para Paulo Guedes, que participou da estruturação da malfadada experiência e tenta replicá-la no Brasil. Em nosso país, os resultados seriam bem mais desastrosos, dada a magnitude da exclusão social, mantida após mais de três séculos de escravidão.

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