Artigo – Crescer para quem?

  • 26 de março de 2021
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Temos visto, no centro do debate econômico dos últimos meses, questões como: Não havendo a pandemia, quanto o PIB teria aumentado em 2020? Sua retração, em função da pandemia, poderia ter sido menor? Tivemos ou teremos a recuperação em V e o que precisamente isso significa? O PIB continuará se recuperando e em que ritmo? Ainda que pertinentes, tais questões não devem ofuscar a principal: Crescer para quem?

O governo tem insistido com os cortes nos gastos públicos e com as reformas econômicas, alegando ser a estratégia adequada para o PIB crescer mais rápido, com aumento dos investimentos privados e inflação controlada. Na realidade, essa estratégia dificulta tais resultados, que dependem muito mais de demanda efetiva suficiente, mas, vale ressaltar, que mesmo se alcançados, não proporcionam sempre melhor qualidade de vida para todos, que deveria ser o propósito final das ações do governo.

Mesmo considerando apenas o segmento mais organizado, os setores que avançam e recuam fazem muita diferença, em termos do número de indivíduos beneficiados. Soja e minério de ferro, por exemplo, têm geração de emprego e efeitos em outros setores muito limitados, enquanto a construção é grande geradora de empregos diretos, demandante de um amplo setor de insumos, aumenta o capital fixo da economia, inclusive em infraestrutura, que viabiliza muitos investimentos privados.

Ainda assim, maior dinamismo em setores que alcancem mais indivíduos ainda não é o suficiente, no caso do Brasil. A profunda desigualdade que persiste aqui, legado de séculos de escravidão, é materializada mantendo a maioria das pessoas desconectadas ou precariamente conectadas com a dinâmica daquele segmento mais organizado da economia, numa situação já identificada como uma Belíndia – uma pequena Bélgica sobreposta a uma grande Índia. Nessas circunstâncias, a política econômica precisa ir muito além das tradicionais políticas fiscal, monetária e cambial. É preciso medidas mais localizadas, com incentivos e suportes para emancipar comunidades da dependência de políticas assistenciais.

Essa situação começou a ser revertida, ainda que de forma muito gradual, com a Constituição de 1988 e em vários governos posteriores. Dentre as diversas ações, vale mencionar (i) a política de valorização do salário mínimo, com importantes rebatimentos nas curvas salariais das empresas e no setor informal; (ii) a expansão de escolas e universidades públicas, assim como do financiamento a estudantes no ensino superior privado; (iii) a criação e fortalecimento do SUS; (iv) o programa de habitação popular, Minha Casa Minha Vida, e o de infraestrutura, Programa de Aceleração do Crescimento, ambos trazendo grande expansão para o setor econômica e socialmente estratégico da construção. Todavia, as elevações na remuneração do trabalho e nos gastos públicos ocorridas nesse período comprimiram os retornos sobre o capital em vários setores, sempre acostumados com taxas absurdamente altas.

Precisamos que os empresários se habituem com retornos mais civilizados, nos níveis vigentes em economias mais desenvolvidas, o que se torna mais factível com as reduções nos retornos das aplicações financeiras. Também precisamos de condições mais favoráveis para maior eficiência e produtividade na produção e no investimento, com melhor infraestrutura, setor público mais eficiente e instituições mais adequadas. Infelizmente, as reformas que vêm sendo propostas nos últimos anos não são nesse sentido, mas sempre buscam reverter as melhorias alcançadas pela população de menor renda, criando condições para baixar remunerações do trabalho e gastos públicos que beneficiam essa parcela. Assim ocorreu com os tetos constitucionais para os gastos, reforma trabalhista, reforma da previdência e proposta de reforma administrativa.

O argumento do governo, de que o endividamento público estaria em seu limite máximo, prestes a desencadear um caos financeiro, com profundos efeitos recessivos e inflacionários, não tem qualquer sustentação nas ideias econômicas que atualmente predominam internacionalmente. Até o governo dos EUA, a maior nação liberal do mundo, está propondo plano de endividamento e gastos públicos em escala que não ocorria desde a Segunda Guerra Mundial. Assim como naquele país, os reais limites estão na capacidade produtiva ociosa vigente, o que claramente é suficiente, neste momento, para acomodar novo auxílio emergencial, sem a necessidade de cortes de gastos públicos.

Expansões no endividamento público podem causar mais volatilidade de ativos no mercado financeiro e de capitais. Em particular, podem elevar as avaliações de risco dos detentores dessa dívida, levando a maiores taxas de juros. Assim, o custo de capital dos projetos ficará menos favorável. Contudo esse custo não seria o único determinante das decisões de investimento. Uma melhor infraestrutura aumenta o retorno de muitos projetos e demanda insuficiente pelo próprio produto impede a implementação de qualquer um deles. A equipe econômica sabe disso, mas, confrontada, apresenta uma outra argumentação, aquela de reduzir o tamanho e a ação do Estado para minimizar corrupção e ineficiência. De fato, estes são desafios que precisamos enfrentar, mas sem desmontar o estado de bem estar social que começamos a construir.


Fernando de Aquino Fonseca Neto é doutor em Economia pela Universidade de Brasília e coordenador da Comissão de Política Econômica do Cofecon. Artigo originalmente publicado na Carta Capital.

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