Artigo – Educação Financeira, Inclusão Financeira e Novos Padrões de Consumo e Produção
Por Silvana Parente – Doutora em Economia pela Universidade Autônoma de Madrid, Mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará, Especialista em Desenvolvimento Regional pelo MIT e em Microfinanças por Harvard. Autora de várias publicações entre as quais o livro CONVERGÊNCIA PARA INCLUSÃO:Economia Solidária, Desenvolvimento Territorial e Microfinanças. Atualmente é Vice-presidente do CORECON-CE e Diretora do Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano-IADH, onde atua nas áreas de microfinanças, desenvolvimento econômico regional e territorial, economia solidária e políticas de inclusão financeira e produtiva.
A falta de educação financeira tem sido pautada recentemente como a grande vilã do elevado endividamento da população brasileira. Essa meia verdade pode nos conduzir a uma conclusão simplista de que a população está endividada porque não sabe gerir seu orçamento nem fazer as melhoras escolhas no leque de opções do Sistema Financeiro Nacional. Portanto precisamos situar a Educação Financeira em um contexto mais amplo e complexo da inclusão financeira e da construção de novos padrões de consumo mais sustentáveis. Com esse foco de análise, espera-se contribuir para o desenho de programas de Educação Financeira mais consistentes e que possam contribuir para a dinamização da economia com foco na redução das desigualdades e na sustentabilidade ambiental.
Primeiro vamos abordar a preocupante questão do endividamento das famílias. Em seguida apresentar um panorama da Inclusão Financeira no Brasil e, dentro desse contexto, situar a importância da Educação Financeira e seu potencial de libertação e contribuição para melhoria da qualidade de vida das famílias brasileiras. Como está o endividamento das famílias, quais suas causas e consequências? A população brasileira tem acesso e usa adequadamente os serviços financeiros ofertados pelo Sistema Financeiro Nacional. Qual o papel da Educação Financeira e seus limites?
Sobre o endividamento
O percentual de famílias com dívidas aumentou em dezembro 2019 para 65,6%, alcançando o maior patamar da história, segundo Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor da Confederação Nacional do Comércio, Serviço e Turismo. O percentual de famílias com dívidas em atraso está em 24,5% e 10% declaram que não tem condições de pagar essas dívidas. O tempo médio de comprometimento com dívidas vem também aumentando tendo atingido 6,9 meses e a parcela de comprometimento da renda com dívidas é de 29,7%. Ou seja, essas famílias, mesmo se conseguirem manter seu fluxo de renda, utilizarão quase 30% de sua renda por quase 7 meses do ano para voltar a uma condição de acessar novamente mecanismos de crédito, sendo obrigadas a reduzir drasticamente o seu nível de consumo.
O que a Educação Financeira pode fazer para essas famílias já endividadas? Ensinar-lhes a cortar gastos supérfluos? O que são gastos supérfluos segundo as categorias de renda? Ensinar-lhes a não deixar atrasar o cartão de crédito? E se eles usam esse cartão apenas para a sobrevivência da família? Ensinar-lhes a renegociar dívidas com taxas menores e prazos maiores? E se houver perda de emprego ou redução de salário ou de aposentadoria de um dos membros da família?
Assim, o elevado número de famílias endividadas e seu elevado endividamento não pode ser atribuído apenas à falta de educação financeira, dado que ´parte significativa da população não tem nível de renda suficiente nem estável para participar dessa grande festa que é o mercado de consumo. Para agravar mais ainda, as lojas e instituições financeiras apresentam as facilidades do crédito direto ao consumidor, sendo o cartão de crédito o grande vilão do endividamento das famílias, conforme veremos logo a seguir.
Sobre Inclusão Financeira
O Banco Central do Brasil (BC) define a Inclusão Financeira como o processo de efetivo acesso e uso da população de serviços financeiros adequados às suas necessidades, o que contribui para a melhoria da qualidade de vida. Desde 2010 o BC levanta dados sobre a inclusão financeira no Brasil [2] e promove anualmente fórum para discussão, tentando responder as seguintes perguntas: As pessoas estão acessando os canais disponíveis? A população está usando que tipo de transações financeiras? Qual a extensão e profundidade de uso dos serviços financeiros?
Na prática, o termo “acesso” significa a distribuição dos canais de acesso em todo o País, chamados por redes de atendimento presenciais – agências, postos de atendimento, correspondentes bancários, ATMs e canais de acesso remoto– call centers, Internet Banking e aplicativos para celular. Sob essa ótica, o Sistema Financeiro Nacional tem melhorado muito, podendo ser comprovado com os seguintes indicadores: 100% dos municípios brasileiros possuem pelo menos um ponto de atendimento presencial e 66% das transações já são feitas por canais remotos.
No que se refere ao “uso” de serviços financeiros por parte da população, o Banco Central mede o percentual de pessoas com contas de depósito à vista (conta corrente), contas de poupança e contas de investimento. Em geral, a posse de conta indica o início do relacionamento com a instituição. Em seguida analisa o uso do crédito, segundo várias modalidades.
Segundo o BC, 86,5% da população brasileira adulta possui alguma conta bancária [3], 32% possui conta de poupança e 44% tem operações de crédito. Ocorre que 89% dos detentores de conta ativa a utilizam apenas para operações básicas como recebimento de salários, pagamentos e saques. Já sobre as contas de poupança, 80% das pessoas a utilizam para guardar dinheiro em segurança para gastos futuros e não como uma forma de investimento que rende juros. Isso aponta para uma possível “inadequação dos produtos e serviços financeiros ofertados“ sobretudo quando os titulares da conta são de baixa renda, baixa escolaridade e idade avançada.[4]
Agora vamos analisar dados sobre o acesso e uso de serviços de crédito disponíveis no mercado e suas implicações na gestão financeira e no endividamento das famílias.
Os dados da pesquisa do BC revelam que quase metade das famílias brasileiras (40%) utilizou pelo menos um tipo de crédito ou empréstimo nos últimos doze meses. A pesquisa aponta que “o crédito dado pelos lojistas é a forma mais usada entre os brasileiros, seja pelo uso do cartão da loja (16% dos casos), seja por meio de crediário/carnê/fiado direto na loja (em 15% dos casos). A pesquisa aponta o crédito do cartão de crédito (considera apenas quando a pessoa deixa de pagar o valor total da fatura) como a terceira forma de crédito mais utilizada (em 11% dos casos) pelos brasileiros, apesar de ser uma das mais caras. Empréstimo pessoal aparece em 18% das respostas, sendo 9% na modalidade consignado em folha, como a quarta forma mais comum de uso de crédito”[5].
Embora realizados em períodos e metodologias distintas, essa distribuição do uso do crédito é coerente com o resultado da pesquisa de endividamento da CNC, mais atualizada (dez 2019), a qual constata que o Cartão de Crédito foi apontado em primeiro lugar como a principal tipo de dívida por 79,8% das famílias endividadas, seguido por Carnês (15,6%), Crédito Pessoal ( 7,7%) e Cheque Especial (6,1%). O cheque especial e o rotativo do cartão (diferença entre o valor da fatura e o valor pago) são as modalidades de maior custo e ainda de mais fácil acesso, o que estimula o endividamento.
Quando se analisa o que motivou as pessoas a tomarem crédito, 50% mencionou que foi para consumo, 38% que foi por motivo de endividamento e 23% para pagar contas da casa. Um percentual muito pequeno (13%) citou reforma da casa e um percentual menor ainda (5%) para aplicar em seu próprio negócio. Isso significa que a modalidade de crédito de maior acesso e uso entre os brasileiros tem sido o crédito de consumo, o qual embute as maiores taxas de juros, criando um circulo vicioso de endividamento.
Por fim observa-se que o hábito de poupar é pouco disseminado no Brasil, havendo desequilíbrio entre a evolução do crédito, mais acelerada, e a evolução dos depósitos, mais lenta. De fato, desenvolver o hábito de poupar, em especial, com o objetivo de formar reserva financeira, é um desafio da inclusão financeira para os próximos anos.
É necessário, pois, uma atuação mais forte na promoção da inclusão financeira, não apenas na direção da bancarização em si, ou seja, abertura de contas e utilização de meios de pagamento, mas também no sentido de ampliar o acesso e garantir a adequação de produtos e serviços financeiros, fazendo com que o sistema financeiro cumpra o seu papel esperado na economia, de intermediar poupança, de ampliar oportunidades para uso do excedente, além da necessária agilidade e segurança do sistema.
Endividamento e Novos Padrões de Consumo e Produção
Uma das grandes causas do aumento do endividamento tem sido o consumismo, ou seja, o ato de comprar produtos e serviços sem analisar sua real necessidade, gerando desperdício. O consumismo é alimentado pelo marketing das empresas e efeito demonstrativo nas mídias convencionais e redes sociais e faz parte da essência do capitalismo. Nesse contexto surge o relevante tema do consumo consciente, no nível microeconômico da família e de novos padrões de consumo e produção no nível macroeconômico.
Já se sabe que, hoje, produzimos e consumimos mais recursos do que o planeta pode oferecer, sem falar das desigualdades de riqueza e renda do planeta. Como o modelo de crescimento capitalista tem sido impulsionado pelo consumo, como conter a escalada do consumo insustentável, justo em uma década em que a classe média dos países emergentes está ávida para entrar nessa festança ?
O endividamento insustentável do consumidor tem impacto na extração de recursos naturais, nos processos produtivos industriais e nos perigos à saúde, comprometendo a qualidade do crescimento econômico e a sustentabilidade do planeta. Os níveis e padrões de consumo devem ser, pois, compatíveis com as transformações na esfera da produção e com o uso mais eficiente dos recursos naturais, em especial água e energia. Daí a importância das abordagens da economia circular e do pensamento do ciclo de vida dos produtos, onde a reutilização e reciclagem desempenham papel fundamental.
ambém está na hora de se construir um viés sustentável e distributivo na reforma tributária, desonerando produtos e serviços que apresentem menor impacto ambiental e social e onerando os que mais impactam negativamente, estimulando assim novos padrões de consumo e produção mais sustentáveis.
Educação Financeira
A educação financeira transmite conhecimentos, atitudes, habilidades para que as pessoas adotem boas práticas para administrar o seu dinheiro de forma eficiente. Ou melhor, ao ganhar suas receitas, como fazer o melhor uso do dinheiro, gastar com cautela, poupar, fazer empréstimo e investir com sabedoria.
Avaliando as práticas de planejamento financeiro das famílias, a pesquisa do Banco Central aponta que a grande maioria (82%) das pessoas costuma planejar seus gastos. Entretanto, desse total, apenas 20% costuma tomar nota dessas despesas. Por outro lado, 25% das pessoas assumem que já consumiram por impulso. A pesquisa também revela que o fato de planejar como gastar seu dinheiro se mostrou fator positivo na capacidade de poupar, independente do comportamento declarado do consumidor, se impulsivo ou não. Daí a importância da educação financeira como instrumento preventivo do endividamento e melhoria do uso dos produtos financeiros.
Considerando que a maioria das famílias estão endividadas, o processo de educação financeira deve se iniciar com a reflexão sobre as causas desse endividamento e, em seguida, discutir formas de saída para esse endividamento no nível micro da família, mas com capacidade de compreender e influenciar a oferta nem sempre adequada de produtos e serviços financeiros. Também é necessário combater a prática perversa do consumismo, estimulando práticas de reflexão sobre a real necessidade dos produtos a consumir, diminuição do desperdício e descarte adequado de resíduos.
Diante de tamanha desigualdade e insustentabilidade do desenvolvimento, o fomento à inclusão financeira se converteu em uma prioridade universal que foi confirmada pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS determinados pelas Nações Unidas para 2030. Dentre os 17 objetivos do Desenvolvimento Sustentável a inclusão financeira está presente em cinco deles, os quais são especificamente vinculados a um acesso mais massificado aos serviços financeiros.
Ações de promoção da inclusão financeira, da educação financeira e da proteção ao consumidor passaram cada vez mais a estar presentes nas agendas das entidades governamentais e de organismos internacionais, em função do reconhecimento da importância desses temas para a estabilidade econômica e o desenvolvimento econômico e social em escala mundial. O Banco Central tem liderado esse debate no Brasil, culminando com a construção do conceito de Cidadania Financeira como sendo “o exercício de direitos e deveres que permitem o cidadão gerenciar bem seus recursos financeiros” [6]. A Cidadania Financeira está fundada em 4 pilares, sendo a educação financeira apenas um deles: Inclusão Financeira; Educação Financeira; Proteção ao Consumidor de serviços financeiros; e Participação no debate sobre o funcionamento do sistema financeiro.[7]
Temas como as questões de gênero e a inclusão financeira das mulheres também são objeto de pesquisa buscando compreender as diferenças entre homens e mulheres, tanto com relação ao acesso quanto ao uso de serviços financeiros.
Por fim, a recente inserção da educação financeira como tema integrador na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) se configura como um passo importante para que efetivamente as questões relacionadas à vida financeira façam parte da vida de jovens e crianças. Nesse sentido é muito importante o engajamento e participação formal dos economistas nessa construção, contribuindo com o seu desenho e formas de implementação, tanto em termos da abrangência de seus conteúdos, quanto da sua estratégia pedagógica de implementação.
[1] Silvana Parente, Doutora em Economia pela Universidade Autônoma de Madrid, Mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará, Especialista em Desenvolvimento Regional pelo MIT e em Microfinanças por Harvard. Foi funcionária do Banco do Nordeste onde ocupou de chefia do Departamento de Estudos Econômicos-ETENE, do Departamento Rural e do Gabinete da Presidência, quando coordenou a implantação do Programa de Microcrédito CREDIAMIGO. Na gestão pública foi Secretária-Executiva do Ministério da Integração Nacional e Secretária de Planejamento e Gestão do Ceará, quando implantou a Escola de Gestão Pública e o planejamento público participativo e regionalizado. Autora de várias publicações entre as quais o livro CONVERGÊNCIA PARA INCLUSÃO:Economia Solidária, Desenvolvimento Territorial e Microfinanças. Atualmente é Vice-presidente do CORECON-CE e Diretora do Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano-IADH, onde atua nas áreas de microfinanças, desenvolvimento econômico regional e territorial, economia solidária e políticas de inclusão financeira e produtiva.
[2] De 2010 a 2014 vide Relatório de Inclusão Financeira RIF BC 2015. De 2015 a 2017 vide Relatório de Cidadania Financeira RCF BC 2018
[3] Esse mesmo indicador medido pelo Global Findex foi de 70%, atribuindo-se essa diferença ao elevado número de contas inativas pela contagem do BC.
[4] Vide Série Cidadania Financeira 3 -Pesquisa sobre Uso e Qualidade de Serviços Financeiros no Brasil, BC 2016.
[5] Vide Relatório da Cidadania Financeira BC 2018.
[6] Vide Jornada da Cidadania Financeira no Brasil, BC 2018
[7] Vide O que é Cidadania Financeira? BC 2018