Artigo: Monopólio na digitalização cartorial: uma tréplica
Brasileiros têm direito ao acesso direto, sem intermediários obrigatórios
O artigo de Flaviano Galhardo (“O fim do ‘Brasil pastinha”, 23/9), presidente da Associação dos Registradores de Imóveis de São Paulo (Arisp) e do Registro de Imóveis do Brasil (RIB), publicado nesta Folha, é uma confissão de que os dados pessoais dos brasileiros e todo o sistema registral estão sequestrados pelo interesse privado de poucas associações de cartórios, um dos grupos mais poderosos do país.
Além disso, ao defender que o modelo de centrais de cartórios seria importante para melhorar nossa posição no relatório “Doing Business”, revela desconhecimento de que tal ranking acaba de ser descontinuado pelo Banco Mundial por distorções e uso indevido de dados para tentar justificar o indefensável.
É esse mesmo grupo que aprovou um “jabuti” na MP 1.051/2021, em cujo artigo 25 “legaliza” o ilícito: associações “sem fins lucrativos” de cartorários poderiam explorar economicamente o sistema cartorial, aumentando o custo dos serviços.
Quatro ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) propostas perante o Supremo Tribunal Federal tratam do tema: 5.771, 5.787, 5.883 e 6.787.
As mencionadas associações de cartórios, em decorrência de diversos atos administrativos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que proibiram que os cartórios oferecessem diretamente seus serviços pela internet, passaram a cobrar taxas dos usuários e dos próprios cartorários, disso resultando receitas milionárias, sobre as quais jamais incidiu qualquer controle.
É de se perguntar: a associação dos magistrados presta serviços de jurisdição, a associação dos delegados investiga? Por que as associações dos cartorários estão fazendo essa intermediação?
O CNJ apura o total de valores cobrados ilegalmente por dezenas de associações de cartórios da Caixa Econômica Federal no PP 0005169.94.2020.2.00.0000. Em 2015, a Caixa Econômica Federal contratou sem licitação o envio de 108 mil documentos para cartório. Sem licitação, pois a Caixa não poderia mandar documentos diretamente aos cartórios paulistas, mesmo se quisesse. Estima-se que, de 2015 a 2020, isso gerou uma despesa de R$ 30 milhões em desfavor da Caixa Econômica Federal, sem contar a enorme base de dados pessoais amealhada nessa operação.
Uma das centrais já vazou dados pessoais de 1 milhão de pessoas, inclusive crianças. Os riscos são enormes, especialmente quando em outra associação se reúne toda a biometria e todos os cartões de assinaturas dos brasileiros, por determinação do provimento 100/2020 do CNJ.
Os brasileiros têm direito a acesso direto e digital ao cartório, sem intermediários obrigatórios estranhos ao nosso modelo constitucional.
Nenhuma norma, seja medida provisória ou ato administrativo do CNJ, pode ensejar a intermediação dos serviços dos cartórios. Apesar de estar fora de moda, ainda temos uma Constituição e precisamos defendê-la de maneira intransigente.
Antonio Corrêa de Lacerda é Presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e professor da Faculdade de Economia, Administração, Ciências Contábeis e Atuariais da PUC-SP.
Rafael Valim é Professor visitante da Universidade de Manchester e diretor do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree).
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 20/10/2021.