Artigo – Mulheres e a Economia
Mulheres economistas: reflexões sobre os avanços e limites no século XXI
Por Mariana Jansen – Professora-doutora do Departamento de Economia e da Pós-graduação em Economia Política na PUC-SP
Introdução
Ao final da década de 2010, diversos cargos-chave de economista, de algumas das principais organizações internacionais da área ou correlata, eram ocupados por mulheres: Gita Gopinath, no Fundo Monetário Internacional (FMI); Pinelopi Goldberg, no Banco Mundial; Laurence Boone, na OCDE; e Beata Javorcik, no Banco de Reconstrução e Desenvolvimenot da União Europeia (EBRD). Além disso, a presidência do Federal Reserve Board (FED) – o “Banco Central” estadunidense – desde 2014 pela economista Janet Yellen, e mesmo a marcante presidência da advogava, mas em uma atuação na área econômica, Christine Lagarde, presidente do FMI por mais de oito anos (2011-2019) e depois do Banco Central europeu, seriam todas claras evidências de que as restrições que existiam à participação profissional feminina, especificamente no campo econômico, seriam algo do passado.
No Brasil, a presença de mulheres economistas em posições semelhantes parece mais frágil. Exceções são identificáveis: importantes formuladoras da economia do país (como a portuguesa Maria da Conceição Tavares até, recentemente, Laura Carvalho), passando por uma ministra da economia (Zélia Cardoso de Mello) até a única presidente mulher até hoje no país, a economista Dilma Rousseff.
No entanto, os exemplos existentes no país, e mesmo a relevante presença no cenário internacional, não podem obscurecer reflexões mais profundas e estruturais sobre a relação entre a mulher e a economia.
A maior presença feminina deve ser contextualizada dentro de um debate econômico mais amplo: como a mulher e a economia se relacionam neste início de século XXI? Isso porque, se de um lado, as últimas décadas apresentaram um importante aumento da inserção da mulher no mercado de trabalho, a partir de melhores níveis educacionais, e alcançando posições relevantes e rendimentos elevados, por outro lado, de forma estrutural, a inserção feminina no mercado de trabalho manteve-se limitada e com rendimentos menores do que a do homem e a mulher acumulou dupla jornada de atividades.
De forma ainda mais profunda, conforme abordado por Hirata (2015 apud Lapa, 2018), diversas das características do capitalismo das últimas décadas, liberal e globalizado, tenderam a impactar predominantemente sobre as mulheres: mais empregos femininos vulneráveis; desregulamentação de mecanismos de proteção às mulheres; retirada de políticas de auxílio aos cuidados às crianças e idosos, ampliando a carga de responsabilidades das mulheres para além do trabalho remunerado. No que diz respeito especificamente às economistas, é importante observar se os “exemplos de sucesso” no cenário internacional são de fato indícios de uma mudança sistemática e profunda ou exceções que continuam, na verdade, reforçando a regra: o mundo econômico ainda é, predominantemente, masculino.
Mulheres e a economia
A análise econômica sobre a relação entre as mulheres e seu impacto econômico pode, evidentemente, ocorrer de diversas formas.
Neste breve artigo, temos como objetivo apontar alguns dos temas mais caros à reflexão sobre a relação mulher-economia, indicando alguns elementos de reflexão e importantes temáticas que merecem (ainda maior) atenção na ciência econômica. A primeira é a relação entre a mulher e o trabalho, sob duas perspectivas – relacionadas: a elevada alocação feminina de horas para atividades não remuneradas e sua participação no mercado de trabalho. Diversas autoras (Saffioti, 2013; Hirata, 2014) apresentaram o histórico de divisão social do trabalho e o lugar que, de forma predominante, as mulheres tiveram durante séculos nas relações sociais, do ponto de vista do trabalho doméstico.
No entanto, como verificável em diversas partes do mundo, incluindo no Brasil, é claro como a taxa de participação da mulher, ou seja, a parcela das mulheres inseridas no mercado de trabalho, ampliou-se de forma significativa ao menos desde os anos 1950.
Em paralelo a maior inserção profissional, a educação das mulheres começa a se ampliar em todos os níveis educacionais. Nessa década, três fatores (influenciados por transformações culturais e sociais, e que tenderam a se reforçar) ocorreram: aumento dos níveis educacionais femininos, com importante redução no hiato de gênero; ampliação na taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho; queda na taxa de fecundidade (Leone; Portilho, 2018).
O rápido aumento da escolaridade feminina fez com que, já na década de 1980, elas se tornassem a maioria no ensino superior no país. Em 2016, dentre a população com 25 a 44 anos, 15,6% dos homens e 21,5% das mulheres possuía ensino superior completo (tabela 2).
A maior escolaridade das mulheres, assim como sua maior participação no mercado de trabalho, não lhes gerou, no entanto, rendimentos mais elevados (tabela 3). Em todas as faixas educacionais, ao comparar homens e mulheres inseridos no mercado de trabalho, os homens têm sempre rendimentos mais elevados do que as mulheres. Além disso, quanto mais elevado o nível educacional, maior a diferença de rendimento: de 1,4 vezes para os que possuem até 8 anos de escolaridade, passando para 2,5 vezes na média entre homens e mulheres com mais de quinze anos de estudo. Dado o tamanho da diferença de rendimento nas ocupações com maior escolaridade, o trabalho realizado por Leone e Portilho (2018), a partir dos dados da PNAD 2013, explicita essa diferença nos rendimentos médios dentro dos grupos de ocupação.
Considerando todas as ocupações, formais e informais, o salário médio das mulheres era 76% dos homens em 2016: R$ 1.764 frente a R$ 2.306 (tabela 2).
Além dos salários mais baixos, e talvez reforçado por isso, a força de trabalho feminina continua sendo a principal responsável pela realização dos afazeres domésticos e de cuidados pessoais. Enquanto os homens alocam, em média, 10,5 horas por semana neste tipo de atividade, as mulheres despendem 18,1 horas (tabela 2), sendo a diferença até maior entre as mulheres que trabalham. Isso significa que as mulheres ou são submetidas a duplas jornadas de trabalho, em um padrão social que ainda vincula, de forma predominante, a mulher ao cuidado do mundo privado e como uma força de trabalho secundária (Abramo, 2007), mesmo em países de alta renda (Picchio, 2018) ou têm sua inserção no mercado de trabalho limitada.
Mulheres economistas
De acordo com dados do Conselho Federal de Economia (Cofecon), em 2018, 26,8% dos registros profissionais de economia eram de mulheres.
No entanto, ao se analisar a presença de mulheres na graduação em economia no Brasil, elas representavam 43% das formandas em 2017. Embora isso signifique que sejam minoria no curso – diferente do que ocorre na maior parte dos cursos superiores – ainda sim é uma participação maior do que registrada na continuação na carreira.
Este é um padrão que se verifica também no meio acadêmico, não só no Brasil, mas em outros países analisados (Tabela 4).
A participação feminina, com exceção do mestrado, tende a diminuir conforme a formação avança (doutoramento) e, principalmente, dentro do quadro docente. Professoras com dedicação integral são apenas ¼ dos quadros docentes no Brasil e na França e menos de 15% nos Estados Unidos.
A baixa presença de mulheres faz com que o próprio campo de reflexão da ciência econômica é afetado pela pequena presença de mulheres. De acordo com artigo de May, Kucera e McGarvey (2018), publicado em uma revista do FMI, a baixa presença feminina fez com que alguns temas na economia sejam pouco estudados e que determinadas concepções econômicas tenham um viés predominante decorrente da maior participação masculina. As duas maiores disparidades verificadas na pesquisa ocorreram em termos de percepção sobre a relação entre Estado e mercado e a questão ambiental. Os homens, na média, priorizaram soluções de mercado e as mulheres uma maior intervenção estatal, especialmente no que diz respeito a legislação de proteção trabalhista. Quanto à questão ambiental, as mulheres economistas defenderam de forma mais explicita a incorporação de preocupações com o meio ambiente como taxas para reduzir a emissão de dióxido de carbono; para promover energia renovável; para banir produção com sementes transgênicas. Cabe destacar ainda diferenças de percepção sobre as prioridades de alocação de recursos públicos (com as mulheres reprovando gastos militares elevados) e mesmo diferenças em metodologia de ensino, com as economistas mais propensas a valorizar a interdisciplinaridade na formação dos que os homens.
Essa pesquisa contribui para a hipótese de que a menor presença de mulheres economistas gera vieses no próprio campo de estudo e nas prioridades econômicas e políticas que a ciência econômica fornece. Dentro de uma reflexão heterodoxa e crítica ao mainstream econômico, a preocupação com a maior participação feminina deveria ser ainda maior.
As hipóteses para a baixa presença de mulheres economistas são diversas: preconceito enrizado frente às mulheres, quer seja no meio acadêmico ou no mercado financeiro; predominância da economia neoclássica que gera pouco interesse; persistência de divisões tradicionais de responsabilidade, que fazem com que a mulher, principalmente quando a família decide por ter filhos, postergue sua carreira. Esses diferentes elementos devem ser incorporados na reflexão da economia crítica e considerados não só com objetivo de ampliar a equidade entre homens e mulheres, mas a fim de tornar a ciência econômica ainda mais rica e propositiva.
Referência bibliográfica
Abramo, L.W. A inserção da mulher no mercado de trabalho: uma força de trabalho secundária? Tese doutoramento; São Paulo, USP: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2007.
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Economistas. Disponível em: http://paineira.usp.br/bwe/wp-content/uploads/2019/03/Relat%C3%B3rio-Final.pdf Acesso em: nov. 2019
Hirata, H. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, v. 26, p. 61-74, 2014.
IBGE. Censos Demográficos. Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/sinteses-historicas/historicos-dos-censos/censos-demograficos.html Acesso em: jan. 2020.
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Lapa, T.S. Divisão sexual do trabalho sob a ordem neoliberal. In: Grecco, F.S.; Furno, J.C.; Teixeira, M.O. Dossiê: Economia Feminista. Temáticas. Campinas, SP: UNICAMP/IFCH, ano 26, nº 52, 2018, p. 247-284.
Leone, E.T.; Portilho, L. Inserção de mulheres e homens com nível superior de escolaridade no mercado de trabalho brasileiro. In: Grecco, F.S.; Furno, J.C.; Teixeira, M.O. Dossiê: Economia Feminista. Temáticas. Campinas, SP: UNICAMP/IFCH, ano 26, nº 52, 2018, p. 227-103.
May, A.M.; Kucera, D.; McGarvey, M.G. Mind the gap. FMI: Finance & Development, jun. 2018, p. 54-56.
Open data Enseignement Supérieur et Innovation. Disponível em: https://data.enseignementsup-recherche.gouv.fr/pages/home/ Acesso em: nov. 2019
Picchio, A. Trabalho feminino no cerne do mercado de trabalho. In: Grecco, F.S.; Furno, J.C.; Teixeira, M.O. Dossiê: Economia Feminista. Temáticas. Campinas, SP: UNICAMP/IFCH, ano 26, nº 52, 2018, p. 69-103.
Saffioti, H. A mulher na sociedade de classe: mito e realidade. 3° edição. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013.