Artigo – O custo elevado da Política Monetária e a pobreza do debate sobre inflação no Brasil.
Por: Alexsandro Sousa Brito, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão (DECON/UFMA); Thiago Melo Antoniolli, doutorando em Economia no Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense (PPGE/UFF); e Rodrigo Gustavo de Souza, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão (DECON/UFMA).
Embora ainda muito recente, a condução da política monetária, do atual governo, parece não diferir, significativamente, do que vem se consolidando nos últimos dois anos. O consenso estabelecido de que há um processo gradual de recuperação da atividade econômica, ainda permanece, embora haja o reconhecimento de que, no último trimestre, esse processo tenha sido interrompido pelo provável recuo do PIB (com queda de 0,68%), o que vem suscitando revisões significativas nas projeções para o crescimento do PIB brasileiro em 2019.
O entendimento do Banco Central é que os óbices sobre a atividade econômica, como o deste último trimestre, decorrem dos choques sofridos em 2018, cujos efeitos persistem, com defasagens, apesar de extinguidos os impactos imediatos desses choques. A crença de que, apesar dos óbices, ainda estamos num processo gradual de recuperação econômica, parece partir do balanço de risco simétrico do BC, da convicção que, pelo menos desde 2017, a taxa de juros encontra-se em terreno estimulativo (com taxas de juros reais ex-ante menor que a taxa estrutural) para atividade econômica e de que as expectativas de inflação encontram-se ancoradas, bem como do fato de que as estimativas da taxa até 2020, são adequadas aos objetivos da meta de inflação.
Se por um lado, temos no período recente juros e inflação em patamares históricos, por outro, as taxas de juros vigentes vieram de patamares elevados e aí se mantiveram por longo período, o que postergou os efeitos deletérios dessa política. Provavelmente por isso, estamos num quadro paradoxal de taxa de juros estimulativa e inflação baixa, com desemprego alto e crescimento baixo.
O custo da gestão da liquidez e o patamar da inflação
Contudo, a política monetária vigente traz custos não desprezíveis. Há, pelo menos, dois aspectos importantes a se considerar: o primeiro refere-se ao custo significativo da gestão de liquidez por meio das operações compromissadas (operação em que o Banco Central – BC, vende ou compra títulos públicos com o compromisso de recomprá-los ou revende-los;). No final de 2006, essas operações representavam 3,2% do PIB; em março de 2019, chegaram a 18%! Nesse período esse tipo de operação cresceu, em termos reais, mais de 8 vezes! Apenas entre fevereiro e março, desse ano, houve aumento de cerca de 3% no volume dessas operações.
O que causa relativo espanto é que quando observamos a experiência internacional, constatamos que o Brasil é o único país a usar, de maneira significativa, deste instrumento para gestão da liquidez. A escolha por este instrumento não é ausente de consequências. O primeiro impacto desse modelo de gestão da política monetária é o custo fiscal. Essas operações representam, hoje, mais de 20% da dívida bruta do governo. Portanto, parte importante do endividamento brasileiro tem origem no custo monetário da gestão de liquidez feita pelo Banco Central, através dessas operações compromissadas. Outro importante impacto é sobre o crédito, como os recursos são alocados no BC que os remunera diariamente, há um enxugamento do nível de liquidez que encarece o crédito, dificultando a atividade da indústria e comércio no tocante a financiamento e empréstimos.
O segundo aspecto diz respeito ao Regime de Metas de Inflação (RMI) e à discussão quanto ao patamar adequado do nível de preços. Embora esta discussão tenha “desaparecido” atualmente, dado os níveis adequados do IPCA e da “ancoragem” das expectativas, é importante destacar que o RMI imprime um custo elevado à atividade econômica.
Um dos problemas é que o RMI “criou” um estado de “pânico” generalizado, no passado recente, junto aos agentes econômicos e à grande mídia, todas as vezes que a inflação “desprendia-se” do chamado centro da meta. Um rápido olhar para trás mostra-nos que desde a implementação do RMI, raríssimas vezes a inflação efetiva ultrapassou o chamado limite superior da meta. Além disso, já tivemos, como é do conhecimento do público especializado, metas bem mais altas com limite superior na casa dos 8% e 10%, bem como, já chegamos a ultrapassar o centro da meta em mais de 8%, quando o RMI exigia uma tolerância de apenas 2%, como foi o caso em 2002, e, nem por isso, o “mundo acabou”, a economia entrou em recessão, o desemprego aumentou ou qualquer coisa parecida.
O RMI, classificado por Bernanke (1999) como uma discrição restringida, limita a ação da autoridade monetária ao determinar seu objetivo e instrumento de atuação. A política monetária é formalizada numa regra de Taylor (1993), que em sua equação apresenta o nível da taxa de juros corrente em função da taxa de inflação e do produto agregado. Não obstante, a equação original de Taylor, publicada em 1993, atribuía peso maior para o nível de preços em relação ao hiato do produto; nos últimos anos, num contexto de baixas taxas de crescimento do produto e da inflação, emerge a discussão se não se deveria dar mais ênfase ao nível do produto agregado, ou seja, adotar de fato um duplo mandato para a política monetária.
No Brasil, no entanto, não parece ser preocupação do BC a imposição de uma meta para o crescimento do produto – mesmo diante do baixo crescimento apresentado pela economia brasileira. Isso fica evidente a partir do resultado da última reunião do COPOM, que apesar das sucessivas reduções na previsão de crescimento da economia e do possível resultado negativo (-0,68%) no primeiro trimestre reluta em reduzir a taxa básica de juros. Nesse contexto, a política monetária fica amarrada ao comportamento do IPCA, que, por sua vez, toma a forma de termômetro da atividade econômica. Contudo, tem-se reconhecido nos últimos anos a incapacidade dos índices de preços em serem bons indicadores do ambiente econômico ou sequer da estabilidade econômica (objetivo precípuo do RMI), uma vez que não captam diversas nuances como, por exemplo, o nível de alavancagem dos agentes ou a valorização de ativos. Logo, ao tomar isoladamente o IPCA (ou mais precisamente, as expectativas sobre o comportamento futuro do IPCA), como indicador para a política monetária, o BC reduz sua capacidade de análise e do reconhecimento das reais necessidades da atual conjuntura da economia brasileira.
O debate sobre a inflação no Brasil passou a ser uma discussão sobre métrica, sobre o núcleo e seus limites, superior e inferior. Passando-se a considerar alta a inflação efetiva que ultrapassa o centro da meta. Uma conclusão contestável, uma vez que, assim não se consideram os impactos da inflação e suas causas. Deveríamos, portanto, discutir a partir de que patamar o impacto sobre o produto torna-se negativo.
A inflação pode ocorrer por diversas causas: desequilíbrios estruturais entre a oferta e a demanda ligado à constituição de serviços públicos não vendáveis ou de investimentos, que implicam em uma distribuição imediata e significativa de renda, sem que haja um aumento concomitante da oferta de bens e serviços, ou que estes aconteçam com grande defasagem; mudança da estrutura de custos dado o conflito político de repartição da renda entre capital e trabalho ou em função de alta inesperada dos custos de produção que torna a oferta menos lucrativa e reduz o volume ofertado; ou pela redução do nível de concorrência nos mercados que faz as empresas repassarem custos diretamente ao consumidor sem proverem outras alternativa de redução de custos; choque de oferta ou por choques de demanda; conflito distributivo; e muitas outras, a depender da especificidade de cada economia.
A questão de se saber as fontes que desencadeiam a inflação está ligada a capacidade da política econômica de suprimir o próprio desequilíbrio e não apenas torná-lo latente, combatendo apenas o sintoma do desequilíbrio, de inquirir sobre as relações de força que governam os ajustes de preços dos bens e serviços que afetam a vida de todos nós. Se a inflação tem causas diversas, é coerente admitir a necessidade de discricionariedade na condução da política monetária. Não se pode tratar sempre do mesmo modo fenômenos que por natureza são suscetíveis a mudanças contínuas, como são os fenômenos sociais. E, só para lembrar, os fenômenos econômicos são fenômenos sociais! E a inflação, ao longo da história, tem apresentado distintas fontes dinâmicas que, nem sempre se enquadram, nas hipóteses do RMI.
Para o RMI, a inflação é invariavelmente um resultado de choques de demanda, a taxa de juros é sempre a variável que controla a demanda agregada e as variações na taxa de câmbio são efeitos colaterais do processo. No entanto, essas hipóteses só se sustentam, como mostrado pela literatura especializada, se alguns pressupostos forem válidos: se o hiato do produto afetar a inflação de forma sistemática; se os choques inflacionários tiverem persistência total; se o produto potencial for sempre independente do produto corrente; e se os choques de custos forem aleatórios.
Assim, a inflação que o RMI espera combater não é produzida por qualquer desequilíbrio de preço, mas é específica de desequilíbrio de demanda. Bom, mas o caso brasileiro é assim? A inflação brasileira dos últimos anos tem apresentado essas características? Alguns estudos mostram que não há correlação entre desemprego e inflação no Brasil; que os choques inflacionários recentes não tem persistência total sobre a inflação; que a tendência do produto é totalmente correlacionada com a evolução do produto corrente; e que os choque de oferta não são aleatórios: há preços administrados que impuseram peso considerável sobre o nível do IPCA; há contratos atrelados ao IGP, que são afetados quando há variação do câmbio, que por sua vez está, fortemente correlacionado com a taxa de juros, não sendo, portanto, um efeito colateral; além disso, as commodities cresceram desde o final dos anos 90 impondo crescimento dos preços de bens importados, embora no final da década dos anos dois mil, os preços tenham começado a cair; além disso, o salário real teve elevação significativa com a política de recomposição do poder de compra, o que impactou, também, a estrutura de custos.
Reconheceu-se, de maneira tardia, que o problema da inflação no Brasil não era necessariamente de demanda, bem como que a inflação era “segurada” pelo câmbio e não exatamente pela taxa de juros. Aliás mesmo que o fosse, qual seria a garantia que os preços recuariam? Provavelmente, o impacto mais significativo dos juros se deu sobre o nível de atividade do que sobre os preços.
Por último, para além da métrica do debate sobre inflação, é preciso considerar qual o patamar em que a inflação efetiva degrada a eficiência produtiva da economia brasileira. Essa questão não se resolve evitando que a inflação ultrapasse o núcleo da meta. As experiências históricas das economias modernas indicam que os países suportaram taxas de inflação de 5% a 20% ao ano sem comprometer sua eficiência produtiva. Trabalhos como o do professor Robert Barro (1996), proeminente economista defensor do livre mercado, sugere que a inflação moderada, de 10% a 20%, tem um baixo impacto negativo sobre o crescimento econômico e que até próximo de 10% a inflação não tem nenhum efeito. Além dele, outro Economista, M. Sarel (1996), estimou que até próximo de 8% a inflação causa apenas um pequeno impacto no crescimento e que a relação é positiva abaixo desse nível, ou seja, abaixo desse nível a inflação ajuda, ao invés de atrapalhar o crescimento. Há outros estudos que elevam o nível de quebra sobre o produto para o patamar de 20% e até mesmo 40% ao ano, como é o caso dos estudos de M. Bruno e W. Easterly (1996).
Essas questões são importantes porque qualifica o que podemos chamar de inflação alta. Uma inflação alta não está, necessariamente, relacionada com sua distância do centro da meta de inflação, mas com o ponto de quebra a partir do qual começa a afetar negativamente o produto. Além desse aspecto, é preciso considerar que o patamar deve estar associado historicamente a estrutura econômica de cada país. Considerando os últimos 20 anos, a inflação brasileira média tem sido de 6,35%, o que sugere que a economia brasileira “roda” historicamente, no que diz respeito as últimas duas décadas, a uma taxa em torno dos 6% ao ano. Se lembrarmos que essa era aproximadamente o limite superior da meta de 4,5%, definida desde 2005, não há como deixar de concluir que o regime de metas estabelece a priori um patamar desconectado com os níveis históricos médios de inflação da economia brasileira! Ora a própria literatura sobre os desenhos de metas de inflação ao sugerirem que a meta deva ser estabelecida como um ponto, um intervalo ou um ponto com bandas de tolerância já sinaliza para que a meta de inflação deve estar associada à experiência de cada país.
Numa leitura conservadora, podemos dizer que países com experiências de altas taxas de inflação não podem convergir rapidamente para um patamar de meta muito baixo; metas mais elevadas ou com bandas de tolerância ou constituídas de intervalos, são mecanismos para atenuar o ônus social em decorrência de políticas monetárias mais austeras na condução da inflação para meta, que deve estar associada às especificidades de cada país. Parece-nos que esta etapa do desenho da política de metas de inflação foi esquecida, restando apenas uma perspectiva ultraconservadora quanto à inflação!
A pobreza do debate sobre a inflação no Brasil não se resume apenas ao discurso da métrica, ou a postura conservadora que considerava a inflação no Brasil algo fora do controle, sem perquirir as razões históricas, a natureza do contexto de inflação e os reais impactos sobre a economia; reside também na incapacidade do debate de sopesar os efeitos políticos das decisões da política monetária, não apenas quanto à imagem da autoridade monetária ou da influência política sobre a condução da política monetária, mas, sobretudo quanto aos efeitos que essa política produz sobre as correlações de forças dentro do bloco de poder hegemônico no Estado.
É preciso ter clareza que a política monetária está sujeita a pressões decorrentes das estratégicas e interesses de poderosos stakeholders que são diretamente afetados pela orientação dessa política. Portanto, não se pode perder de vista que a política monetária tem um impacto muito maior que a variação das estatísticas dos agregados macroeconômicos. Seus efeitos reverberam sobre a vida, e se a luta pela estabilidade monetária não está a serviço da vida, da redução da pobreza e da desigualdade, estará a serviço do quê?
Referências.
Barro, R. Inflation and growth. Review of Federal Reserve Bank of St Louis, vol. 78, nr.3, 1996.
BERNANKE, B. S.; LAUBACH, T.; MISHKIN, F. S.; POSEN, A. S. Inflation Targeting: lessons for international experience. Princeton: Princeton University Press, 1999.
M.Bruno. Does inflation really lower growth? Finance and Development, vol. 32, 1995.
M.Bruno e W.Easterly. Inflation and growth: in search of a stable relationship. Review of Federal Reserve Bank of St Louis, vol. 78, nr. 3, 1996.
Sarel, M. Non-linear effects of inflation on economic growth. IMF Staff Papers, vol. 43, 1996.
TAYLOR, J. B. Discretion vs Policy Rules in Practice. Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy 39, p. 195-214. North-Holland Publising Company, 1993.