Artigo – O sui generis ano de 2020 e as perspectivas para 2021

Por Thiago de Moraes Moreira – Consultor em planejamento estratégico e professor do CORECON/RJ e do IBMEC/RJ.

(Artigo originalmente publicado na 38ª edição da revista Economistas)

 

Quando no fim de 2019 os economistas faziam seus prognósticos para o ano seguinte, nenhum deles poderia imaginar que 2020 pudesse ser o que foi. Infelizmente, este ano será para sempre lembrado pela tragédia humanitária causada pela pandemia da COVID-19. Além das mais de 1 milhão de vidas perdidas em todo o mundo, a pandemia gerou uma recessão global poucas vezes vista na história econômica, compatível com períodos de guerra. Trata-se de uma queda muito maior do que aquelas provocadas pelas crises financeiras, já bem conhecidas entre os economistas. À título de comparação, a recessão causada pela pandemia é de ordem expressivamente maior do que a causada pela última grande crise financeira internacional de 2008/2009, a maior desde a Grande Depressão de 1929.

Em 2020, segundo o World Economic Outlook (WEO) divulgado no último mês de outubro pelo Fundo Monetário Interacional (FMI), o PIB mundial deve registrar uma queda de cerca de -4,4%, significativamente maior que a retração de -0,08% ocorrida em 2009. É interessante notar que o mesmo FMI, no mesmo WEO divulgado no início de 2020, previa uma expansão no PIB global de 3,3%. As necessárias medidas de isolamento social, que levaram ao fechamento de diversas atividades econômicas, representaram um enorme choque de oferta, combinado a outro violento choque de demanda causado pelas restrições à circulação das pessoas e pela consequente forte queda na renda dos trabalhadores, em particular dos setores informais.

Infelizmente, o Brasil aparece como personagem de destaque neste triste capítulo da história, sendo o segundo país com o maior número de vítimas fatais da pandemia (mais de 170 mil). No campo econômico, o PIB brasileiro deve registrar uma retração acima da média global, a maior já computada pelas estatísticas oficiais.

No entanto, chegamos ao fim de 2020 a uma situação bastante peculiar no Brasil. A despeito da enorme tragédia humana e econômica, denota-se uma “estranha” disseminação de otimismo, fundamentado em uma aparente sólida trajetória de recuperação. De fato, após o tombo recorde na atividade econômica em abril, as pesquisas apontam para uma robusta aceleração em segmentos importantes. No acumulado de abril a setembro, segundo o IBGE, o volume produzido pela indústria geral, já descontados os efeitos sazonais, registrou expansão de 37,5%, o que permitiu não apenas recuperar o nível pré-pandemia, mas ultrapassa-lo e alcançar o maior patamar desde agosto de 2018.

No caso do comércio, os dados do IBGE revelam que o volume das vendas do chamado varejo ampliado (que inclui os veículos, autopeças e material de construção), cresceu entre abril e setembro a um ritmo ainda maior, com variação acumulada de 45,8%, também na série dessazonalizada. Este bom desempenho do comércio fez com que o índice de comércio atingisse em setembro seu valor mais elevado desde o final de 2014.

Conforme já esperado, o setor de serviços, no qual há diversas atividades que envolve maior contato e interação entre pessoas (tais como hotelaria, bares e restaurantes, entretenimento, atividades esportivas e culturais, entre outras), apresentou um ritmo de recuperação bem mais lento. De abril a setembro, a expansão acumulada foi de apenas 12%, estando ainda abaixo dos níveis pré-pandemia.

Neste ambiente econômico bastante atípico, identifica-se um movimento que podemos denominar de “overshooting de expectativas”. Uma das principais referências internacionais para a medição do grau de confiança é o chamado Purchasing Manager´s Index (PMI), elaborado pela consultoria IHS Markit para diversos países, sendo calculado com base em respostas de empresários a respeito de diversos aspectos do ambiente de negócios (fornecedores, clientes, estoques, encomendas etc). O valor 50 do PMI representa o marco divisor entre otimismo e pessimismo. O PMI composto (indústria e serviços) da economia brasileira atingiu seu recorde histórico, registrando a marca de 55,9 na última leitura de outubro. É realmente sui generis imaginar que no meio da maior crise já registrada, o PMI atinja tais níveis, superiores inclusive ao que se observa na China, a única grande economia que registrará crescimento em 2020.     

Apesar do crescente otimismo, a tarefa de projetar o que está por vir em 2021 requer entendermos em mais detalhes os elementos que suportaram esta recuperação, destacando em que condições tal trajetória expansiva poderia ser sustentada, bem como as fragilidades que podem mais uma vez frustrar as expectativas.

A política macroeconômica expansionista, outra característica sui generis de 2020 dado o perfil ortodoxo-liberal da atual equipe econômica, teve um papel decisivo para os resultados mencionados. Primeiramente, faz-se necessário destacar o expansionismo fiscal decorrente da elevação das despesas governamentais na forma de transferências de renda às famílias mais vulneráveis, ou seja, a chamada política do auxílio emergencial vigente desde abril.

Até dezembro as despesas totais com o auxílio emergencial devem atingir um montante aproximado de R$ 350 bilhões. Para se ter uma ideia da magnitude do que isso representa, um dos maiores programas de transferências de renda no Brasil, o Bolsa Família, no ano de 2019 transferiu recursos na ordem de 30 bilhões.

Com base nas estatísticas de distribuição de renda do país, denota-se que, de fato, o valor básico de R$ 600 superou a renda efetiva mensal que uma parte expressiva da população brasileira estava habituada a receber. Segundo dados da última “Síntese de Indicadores Sociais” do IBGE referente a 2019, cerca de 25% da população brasileira ganhava mensalmente menos de R$450 (referência para a linha de pobreza do Banco Mundial), sendo a maior parte concentrada nas regiões Norte e Nordeste.

Isto significa que para mais de 50 milhões de brasileiros, o auxílio emergencial representou não apenas uma ajuda para o atendimento de necessidades básicas durante a pandemia, mas viabilizou um aumento significativo no poder de compra. Essa situação se traduziu em um grande choque positivo sobre o consumo privado.

Dessa forma, é também sui generis notar que no ano de maior queda no PIB (e, portanto, da renda agregada) da história, os indicadores que medem a pobreza no país tenham registrado melhora. Segundo o IBRE/FGV, o percentual de brasileiros abaixo da linha de pobreza caiu de 25% para algo em torno de 18% em agosto de 2020, o que fez com os indicadores de concentração de renda também fossem reduzidos.

Contudo, a sustentação da renda e do poder de compra dos mais vulneráveis após a retirada do auxílio a partir do ano que vem só seria possível caso o mercado de trabalho mostrasse uma recuperação mais robusta, o que até agora não aconteceu. Os principais responsáveis pelos empregos no país estão nos mais variados tipos de serviços, nos quais concentram-se as micro e pequenas empresas mais afetadas pela pandemia, e ainda se encontram em grandes dificuldades.

Embora o comércio e a indústria geral sejam importantes empregadores, estas atividades somadas representam apenas 31% dos empregos totais (formais e informais) do país, segundo a PNAD Contínua do IBGE relativa a agosto de 2020. No mesmo período em que ocorreu a forte recuperação na indústria e no comércio, o número de pessoas ocupadas no país caiu de 89,2 milhões para 81,6 milhões, entre abril e agosto. Com isso, a taxa de desemprego também aumentou neste período, de 12,5% para 14,5%. O aumento no desemprego seria muito maior caso não houvesse a redução da chamada “Força de Trabalho”. Este conceito corresponde ao grupo composto pelas pessoas ocupadas e aquelas que estão em busca de algum posto de trabalho, mas não estão ocupadas. Aqueles que deixaram de procurar emprego em função da pandemia saíram da “Força de Trabalho” e, portanto, deixaram também de estarem formalmente desempregados. Caso a “Força de Trabalho” tivesse crescido no ritmo da chamada “População em Idade de Trabalhar”, chegaríamos ao mês de agosto a um total de aproximadamente 106,4 milhões, 10,9 milhões a mais do que o número reportado pela PNAD. Com a volta deste grande contingente ao mercado de trabalho, muitos não devem encontrar colocação, o que potencialmente levaria a taxa de desemprego para níveis próximos de 23%.

Portanto, um aprendizado importante da pandemia é justamente o de que uma política fiscal expansionista calcada na transferência de renda pode não ser suficiente para evitar deteriorações no mercado de trabalho. Como políticas de preservação/geração de emprego, outras ações fiscais seriam mais importantes, tais como a concessão de créditos/subsídios, principalmente às micro e pequenas empresas, ou um programa de investimentos públicos em infraestrutura, os quais envolvem a demanda por atividades mais intensivas em emprego, como a construção civil.  

Outra característica importante do expansionismo macroeconômico durante a pandemia está relacionada a outras duas variáveis econômicas fundamentais, quais sejam: a taxa de câmbio e a taxa de juros. Em 2020, houve uma desvalorização da moeda brasileira que mudou o patamar de flutuação do câmbio, combinada a seguidas reduções na taxa básica de juros (SELIC), que alcançou mínimas históricas.

A taxa de câmbio brasileira já vinha apresentando uma tendência de desvalorização desde o fim de 2014, saltando de uma média de R$/US$ 2,35 para R$/US$ 3,34 em 2015. Com um comportamento bastante volátil desde então, encerrou o ano de 2019 com uma média de R$/US$ 3,94. Com base na observação empírica dos fluxos de comércio exterior e da produção industrial, pode-se dizer que esta dinâmica cambial, embora tenha favorecido as exportações, foi insuficiente para estimular a produção industrial frente à concorrência com as importações.

Quanto as exportações, a despeito de um crescimento mais expressivo nas vendas de produtos primários (22,3% no acumulado 2015/19), as vendas externas dos bens manufaturados também registraram expansão, de 7% neste mesmo período.

No entanto, o desempenho das exportações não garantiu um crescimento da produção industrial como um todo. De 2015 a 2019, a produção da indústria geral sofreu uma variação acumulada de -4,2%, enquanto as importações cresceram 6,4%, ambas em termos reais. Gostaria aqui de destacar os produtos com maior peso relativo, tanto no consolidado da produção industrial quanto das importações: os bens intermediários. Vale dizer que estes bens cumprem um papel diferenciado no sistema produtivo, na medida em que são os responsáveis pelos elos entre as cadeias produtivas. Neste sentido, quando este segmento se enfraquece, os efeitos multiplicadores de uma variação positiva na demanda final se reduzem, isto é, a propagação dos efeitos positivos sobre a atividade industrial por meio dos encadeamentos produtivos se arrefece (HIRSCHMAN, 1958). A produção dos bens intermediários no Brasil encolheu -6,8% entre 2015 e 2019, ao mesmo tempo em que as importações destes bens se expandiram 11%. O enfraquecimento do setor intermediário é chave na explicação sobre as contínuas quedas da atividade industrial a despeito da modesta recuperação na demanda final entre 2017 e 2019.

Com a deflagração da pandemia no país, a moeda brasileira, que em janeiro de 2020 estava cotada à média de R$/US$ 4,13, deu um novo grande salto, para R$/US$ 5,33 em abril. Desde então, as médias mensais vêm oscilando entre R$/US$ 5,20 e R$/US$ 5,60. Os dados da economia real parecem indicar que este patamar cambial passou finalmente a beneficiar não apenas os bens exportados, mas também a tornar a produção doméstica mais competitiva frente às importações, em particular dos bens intermediários[1].         

A última pesquisa industrial do IBGE mostra que a produção de bens intermediários de setembro de 2020 superou em 5,5% o volume produzido de setembro do ano passado, o melhor desempenho entre todas as demais categorias de uso, inclusive quando comparado aos bens de consumo não duráveis (3,4%), os quais foram os mais diretamente beneficiados pelo incremento na renda propiciado pelo auxílio emergencial. A produção dos bens duráveis de consumo também cresceu, com expansão de 2,1% nesta mesma base de comparação. O bom desempenho da indústria de bens intermediários (metalurgia, borracha, plástico, papel e celulose, químicos) potencializou os efeitos positivos derivados da recuperação no consumo. A maior competitividade da produção nacional fica evidenciada quando se compara com os volumes de importação no mesmo mês de setembro, bem aquém do que se observava há um ano (-8,9% dos intermediários, -18,6% dos duráveis e -3,7% dos não duráveis).

Por fim, vale ressaltar a dinâmica da taxa de juros. As reduções mais agressivas na taxa básica (SELIC) a partir de março, que levaram para o patamar mínimo histórico de 2% ao ano, além de contribuírem para que o câmbio fosse depreciado ao nível que confere maior competitividade à indústria, também vem sendo importante para estimular a demanda dos bens duráveis de consumo mais sensíveis ao crédito, tais como veículos, móveis, eletrônicos e eletrodomésticos. De todo modo, é importante lembrar que a participação dos bens duráveis no consumo total é da ordem de apenas 10%, o que limita sua capacidade de liderarem uma trajetória de crescimento do consumo. A despeito do crédito ser importante para impulsionar trajetórias expansivas, a sustentação de um consumo crescente depende mais da demanda pelos bens e serviços vinculados à renda.

Em resumo, a rápida recuperação pode ser explicada pelo choque positivo na renda dos mais vulneráveis, o qual viabilizou um impulso importante na demanda final, potencializada pelas melhores condições de crédito. Em um contexto de maior competitividade da produção nacional em função de um câmbio bastante depreciado, a maior parte do crescimento de consumo foi atendida por produção nacional.

Com base nos elementos discutidos, o prognóstico para 2021 não é muito favorável. Os fatores macroeconômicos responsáveis pela recuperação em 2020 deverão ser, em grande medida, revertidos. Vale ressaltar que este prognóstico não considera a hipótese de uma segunda onda da pandemia no Brasil. Uma eventual necessidade de novas medidas restritivas e de fechamento de atividades levaria a dificuldades ainda maiores.

Quanto à trajetória da renda dos mais pobres, principais responsáveis pela recuperação no consumo, as perspectivas são negativas. Além do mercado de trabalho não esboçar recuperação, o governo vem afirmando sua intenção em retomar a agenda de rígida austeridade fiscal, o que, na melhor das hipóteses, viabilizaria um programa social de transferência de renda que não chegaria a um quinto do que foi o auxílio emergencial.  

Quanto aos demais aspectos macroeconômicos, é esperado que o câmbio volte a se apreciar e os juros apresentem alguma elevação, ainda que modesta. Em um cenário de retorno ao regime fiscal calcado no teto de gastos, redução na percepção de risco devido ao maior controle da pandemia com a vacina, elevada liquidez internacional, volta à normalidade democrática nos EUA e fortalecimento do multilateralismo, o país deve voltar a receber um maior fluxo de divisas estrangeiras. A provável valorização do câmbio voltaria a prejudicar a competitividade da produção nacional, enfraquecendo um dos principais elementos que suportaram a recuperação em 2020. Quanto à taxa de juros, uma vez que se projeta uma aceleração na inflação, e dado o perfil atual do Banco Central, espera-se também o retorno às elevações na taxa SELIC em 2021, contribuindo também para que a moeda brasileira volte a se apreciar.

Em suma, a esperada volta à “normalidade” em 2021 deve provocar uma guinada no expansionismo macroeconômico do sui generis ano de 2020. Neste contexto, o otimismo atual deve mais uma vez se confrontar com os medíocres resultados econômicos do pré-pandemia, aos quais já estávamos habituados.

Referências

Bresser Pereira, L.C (2012): “A taxa de câmbio no centro da teoria do desenvolvimento”. Estudos avançados. vol.26 no.75 São Paulo, maio/ago. 

Hirschman, Albert (1958):  “The strategy of economic development. New Haven: Yale University Press.

[1] Os resultados parecem indicar que finalmente a taxa de câmbio esteja flutuando mais próxima do que a escola novo-desenvolvimentista chama de “taxa de câmbio de equilíbrio industrial”, a qual se caracteriza por conferir condições isonômicas de competição externa para as empresas que operam no Brasil e estão no estado da arte tecnológico (BRESSER PEREIRA, 2012). 

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