Artigo – Pobreza no Brasil: dos avanços civilizatórios pós Constituição de 1988 aos prenúncios da barbárie liberal
Paulo de Martino Jannuzzi- Professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ENCE/IBGE) e Pesquisador CNPq.
(* Artigo na Revista Economistas nº 33)
Introdução
No relatório de Balanço Global do cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, compreendendo o período de 1990 a 2015, a Organização das Nações Unidas constatou avanços expressivos na redução da fome e da pobreza, com destaque em vários países do Sul. Já em 2010 teria sido cumprida a meta de redução da extrema pobreza à metade do nível registrado em 1990 (NAÇÕES UNIDAS 2015). Alguns autores argumentam que tal desempenho seria uma consequência mais relacionada ao que se passou na China e outros países populosos — como o Brasil — do que uma tendência generalizada. Isso porque na África Subsaariana e na Índia os avanços teriam sido muito mais modestos, seja na redução da pobreza, seja na mitigação da fome (SUNDARAM 2016).
De fato, no caso brasileiro, os avanços na redução da pobreza e na mitigação da fome foram bastante expressivos e alcançados antes mesmo de 2015. Outras dimensões associadas à pobreza também tiveram resultados favoráveis no período, como a redução do trabalho infantil e da desigualdade de rendimentos, mesmo que os patamares identificados ao final do período ainda sejam elevados em termos comparativos internacionais.
Esses avanços sociais, muito longe de se constituírem um resultado natural das forças do mercado ou do boom das commodities no comércio internacional nos anos 2000, foram consequência de um deliberado esforço de políticas públicas desenhadas e ajustadas ao longo de vários anos. De um lado, esses avanços foram favorecidos pelos efeitos diretos e indiretos de uma série de decisões no campo econômico como a dinamização na criação do emprego e formalização da mão de obra, viabilizados pela retomada do investimento público e privado, pelas normas de conteúdo mínimo nacional nas compras das estatais, pelo estabelecimento de um mecanismo de redistribuição dos ganhos do crescimento do PIB na valorização real do salário mínimo, entre outros fatores. As mudanças sociais decorrem também, por outro lado, de um expressivo adensamento das políticas sociais expresso pelo fortalecimento das políticas sociais universais, pela criação e rápida expansão de políticas redistributivas, compensatórias e afirmativas e, por fim, os avanços em termos de gestão, articulação interssetorial e coordenação federativa de políticas públicas. Essas forças motrizes, que aceleraram mudanças em várias dimensões no período estariam, desde 2015, perdendo sua pujança, o que explicaria, em boa medida, os retrocessos sociais recentes no país. É o que sugerem as evidências mostradas a seguir.
Pobreza e extrema pobreza entre 1990 a 2014: evolução e determinantes
Segundo estimativas do Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome (MDS), a indigência saiu de um patamar de 14 % da população brasileira em 1992 para 2,5% em 2014 (JANNUZZI e SOUSA 2016). Nessa metodologia considerou-se como linha de extrema pobreza a referência normativa de indigência do Plano Brasil Sem Miséria que, em junho de 2011, estava muito próxima da linha internacional de extrema pobreza do Banco Mundial de US$ 1,25 ajustados ao poder de paridade de compra nos EUA (COSTA;FALCÃO 2014). A pobreza — medida a partir de uma linha de referência de R$ 140 — apresentou um declínio mais forte, caindo de 31% para 7% da população entre 1992 e 2014 (Gráfico 1).
Tendências similares de redução expressiva da pobreza e da extrema pobreza ao longo dos últimos vinte cinco anos têm sido apontadas em vários estudos nacionais e internacionais (IPEA 2014). Com distintas escolhas metodológicas com respeito ao patamar da linha de extrema pobreza e pobreza, deflatores de preços e medidas de renda domiciliar per capita, diferentes pesquisadores e instituições convergem em constatar a tendência de redução significativa do fenômeno, com quedas significativas entre 1993 e 1995 e após 2004. Os estudos divergem, contudo, quanto aos patamares estimados de extrema pobreza e pobreza, seja no início, seja no final do período. Mas vale registrar que, para 2014, várias pesquisas apontam estimativas abaixo de 5% de extrema pobreza para o Brasil. De fato, com base em outros parâmetros para linha de extrema pobreza, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada estimou a indigência em 4,2% população brasileira em 2014, cifra próxima a que a Comissão Econômica para América Latina e Caribe chegou: 4,6%. Para o mesmo ano, o Banco Mundial estimou a extrema pobreza em 3,7% da população. As estimativas de indigência computadas pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas são, contudo, até um pouco mais baixas que as apontadas anteriormente, de 2,3% (2014) e 2,9% (2015)[1].
[1] Essas estimativas foram obtidas mediante consulta aos portais de dados e relatórios dessas instituições (http://www.worldbank.org e www.fgv.br). Para uma discussão sobre indicadores e linhas de pobreza vide FERES, J. C.; VILLATORO, P. (2013)
Se é fato que, como em outros países, o desempenho do mercado de trabalho foi determinante da queda da pobreza, no Brasil, os programas sociais, pelo seu desenho e focalização, tiveram contribuição significativa, como sugere o estudo de Azevedo et al. (2013). A busca ativa e a ampliação da cobertura do Bolsa Família retiraram contingentes expressivos de população da condição de pobreza e extrema pobreza. Em um primeiro momento, com o esforço de busca ativa de população em situação mais vulnerável pelos rincões mais distantes do país e pelas periferias das grandes cidades, identificaram-se famílias para inscrição no Cadastro Único e, portanto, elegíveis para o Programa Bolsa Família. Em um segundo momento, uma vez inseridos como beneficiárias do programa, essas famílias passaram a receber benefícios previstos no programa. Por fim e não menos importante, essas famílias inseridas, como todas as demais, passaram a dispor de um benefício médio maior, pela mudança da estrutura de benefícios e a criação do Benefício de Superação da Pobreza, que complementou a renda até a linha de extrema pobreza.
Entretanto, se para a redução da pobreza e extrema pobreza entre 2003 e 2014 não se pode minimizar a importância do programa Bolsa Família e da política de valorização real do salário mínimo por seus efeitos diretos e indiretos na renda dos segmentos mais pobres, também não se pode deixar de mencionar a formalização do emprego e o acesso a outros serviços e programas públicos como o fomento à produção agrícola e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec). Em 1992, cerca de 43,6% dos ocupados contribuíam para algum instituto de previdência, e em 2015 esse percentual chegou a 61,7%. Em que pese o avanço de 18 pontos percentuais na cobertura previdenciária da população ocupada, há outros 38% deles sem seguro contra acidentes de trabalho e perda de capacidade laboral. Quanto ao Pronatec, a sua oferta em mais de quatro mil municípios garantiu a mais de 2,4 milhões de pessoas a oportunidade de realizar – na sua maioria, pela primeira vez – cursos de qualificação profissional que tiveram impacto significativo nas chances de inserção no mercado formal de trabalho.
Tendências recentes da Pobreza e Extrema Pobreza
Se essa virtuosa combinação de política de desenvolvimento com inclusão através de programas e ações especificamente voltados para grupos sociais mais vulneráveis explica a trajetória histórica de redução da pobreza e da extrema pobreza, a desarticulação desses mecanismos depois de 2014, em um contexto de forte aumento da desocupação, explica a reversão da queda da pobreza e extrema pobreza no período mais recente. De fato, em 2015 há a sinalização de que este ciclo de queda da pobreza se interrompe e, em 2016, com os dados divulgados pela PNAD Contínua, assiste-se a um agudo empobrecimento de parte da população, retrocedendo a patamares que tinham sido superados há vários anos. Observe-se que em relação à extrema pobreza volta-se, em apenas dois anos, ao número de pessoas registradas dez anos antes, em 2006. Entre 2014 e 2016 o aumento desse contingente foi de 93%, passando de 5,1 milhões para 10 milhões de pessoas. Em relação aos pobres, o patamar de 2016 – 21 milhões- é o equivalente ao de oito anos antes, em 2008, e cerca de 53% ao menor nível alcançado no país, de 14 milhões, em 2014 (MENEZES; JANNUZZI 2018).
A reversão dos patamares de pobreza se verifica com maior intensidade nas regiões mais desenvolvidas, como consequência do aumento do desemprego, da perda de ocupações com carteira e da estagnação do rendimento do trabalho. O quantitativo de pessoas em extrema pobreza aumentou, entre 2014 e 2016, cerca de 204% na Região Centro-Oeste, mais do que o dobro da média do país. No Sudeste e Sul o quadro é igualmente desalentador, com ampliação de 140% e 189%, respectivamente. A evolução da extrema pobreza no estado do Rio de Janeiro foi das mais intensas: de 209 mil pessoas em 2014 passou para 481 mil pessoas em extrema pobreza em 2016, 2,3 vezes maior (Gráfico 2). A manutenção de elevadas taxas de desemprego e desmonte de políticas sociais desde 2016 sugerem que esse quadro só fez se agravar.
Considerações finais
Diferentes instituições, universidade e centros de pesquisa debruçaram-se sobre o Brasil nos últimos 15 anos para estudar o que tem sido denominado, por algumas delas, de Modelo de Desenvolvimento Inclusivo. Restringindo-se à análise do posicionamento de centros de pesquisa e organizações internacionais- por uma questão de capacidade de mapeamento e distanciamento das disputas políticas internais no país- alinham-se na explicação mais simples e economicista, em geral, os bancos internacionais, órgãos multilaterais de fomento e centros de pesquisa de inspiração liberal; no outro lado, com interpretações mais complexas e articuladas- respeitadas as nuances- várias organizações vinculadas ao Sistema das Nações Unidas, além de instituições e unidades de investigação social mais plurais e/ou mais identificadas com teses mais intervencionistas acerca do papel do Estado na promoção do Bem-Estar Social.
É representativo da interpretação mais ortodoxa-liberal acerca do progresso social no Brasil, o Relatório Retaking the Path to Inclusion, Growth and Sustainability, em que se debita à recuperação das exportações brasileiras nos anos 2000, sobretudo para China, papel determinante para dinamização do mercado de trabalho e ampliação da capacidade de investimento do governo federal (Banco Mundial 2016). O acesso à credito ao consumidor e a expansão do emprego em setores de baixa qualificação – na Construção Civil, especialmente- teriam reduzido o desemprego e ampliado a massa salarial, com desdobramentos sobre toda a economia. A política de valorização do salário mínimo também é citada como fator dinamizador, mas sem deixar de se registrar seu potencial efeito sobre a diminuição da produtividade do trabalho. Política Social destacada no relatório é, de um lado, o Programa Bolsa Família e o Plano Brasil Sem Miséria, como exemplos de efetividade na redução da pobreza e focalização de gastos públicos; de outro, a Previdência, como caso de gasto social mal direcionado, na perspectiva dos analistas do Banco.
Análises mais densas e abrangentes sobre a mudança social e sobre o papel das políticas públicas no país estão registradas em publicações da Cepal, PNUD e FAO. Na publicação Desarrolo social inclusivo, da Cepal, lançado no final de 2015 por ocasião da I Conferência Regional sobre Desenvolvimento Social da América Latina e do Caribe, reconhece-se que os avanços sociais mais significativos de alguns países da região devem-se, para além da recuperação econômica e de políticas ativas de emprego, à existência de políticas universais de educação e saúde, de um sistema estruturado de Previdência Social e de ações de cunho redistributivo e/ou focalizado, como programas de transferência de renda, políticas de igualdade racial e de gênero (CEPAL 2015).
Nas últimas edições do Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD, o Brasil e seu conjunto de políticas sociais tem sido destacados como referências para outros países. No relatório de 2011, o Brasil é citado como um dos países que conseguiu combinar crescimento econômico, políticas de desenvolvimento social e estratégias de mitigação de danos ambientais. No relatório de 2012/2013, o Brasil é destacado como país em que o progresso material e acesso às políticas públicas se deram em contexto de consolidação de instituições democráticas. O relatório de 2014, em que, de forma um tanto surpreendente, há uma defesa enfática do PNUD da necessidade de estruturação de um sistema de proteção social forte e universal para a promoção do desenvolvimento humano, destaca-se o Brasil pelo desenho, cobertura e escopo das políticas sociais aqui implementadas (PNUD 2014).
O Relatório Food Insecurity in the World de 2014, publicado pela FAO, também destaca o Brasil – e suas políticas públicas – como referência para superação da fome e pobreza (FAO, 2014). Para a instituição, não foi só a ampliação da produção de alimentos que garantiu o acesso aos alimentos para população na região. A universalização do acesso aos alimentos teria sido viabilizada pela estruturação de sistemas de proteção social. Sem isso, os avanços com relação à segurança alimentar não teriam sido tão significativos. O Fome Zero, o Bolsa Família, o Plano Brasil Sem Miséria, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Aquisição de Alimentos e o fortalecimento da agricultura familiar são elencados como experiências inovadoras nesse contexto, e que efetivamente contribuíram para a redução da desnutrição crônica, da pobreza monetária e da subalimentação no país.
A narrativa histórica mais plausível emergirá certamente do balanço dos efeitos da estrutura e conjuntura pós-2016. O desmonte do legado de políticas públicas e de avanços institucionais, sob a lógica de uma política de austeridade do gasto público, sinaliza regressão em várias dimensões, seguindo a trajetória explosiva de aumento de desocupação entre 2014 e 2018. Como se apresentou nesse trabalho, há evidências concretas – e indicadores- de aumento da pobreza e extrema pobreza, mostrando que o país já andou vários anos para trás. Infelizmente, há indicações e perspectivas de que a fome, a insegurança alimentar, a desigualdade e mobilidade social também seguiram trajetórias semelhantes. O país que caminhava, com todos os problemas, para um estágio civilizatório mais elevado, voltou a lidar com problemáticas que se imaginava superadas.
Bibliografia
AZEVEDO, J. P. et al. Is Labor Income Responsible for Poverty Reduction? A Decomposition Approach. Policy Research Working Paper n. 6414, New York: World Bank, 2013.
BANCO MUNDIAL. Retaking the Path to Inclusion, Growth and Sustainability. Brasília, 2016.
CAMPELLO,T. Faces da desigualdade no Brasil. Rio de Janeiro: FLACSO, 2017.
CEPAL. Desarrolo Social Inclusivo. Santiago, 2015.
COSTA,P.V.;FALCÃO,T. O eixo de garantia de renda do Plano Brasil Sem Miséria. In: Tereza Campello; Tiago Falcao Silva; Patricia Vieira da Costa. (Org.). O Brasil Sem Miséria. 1ed.Brasilia: MDS, 2014, v. 1, p.237-259.
FAO. State of Food Insecurity in the World. Rome, 2014.
FERES,J.C.;VILATOROS,P. A viabilidade de se erradicar a pobreza: uma análise conceitual e metodológica. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, Brasília, 15, 2013.
Milênio. Brasília, 2014.
JANNUZZI,P.M.; SOUSA,M.F. Pobreza, desigualdade e mudança social no Brasil de 1992 a 2014: tendências empíricas para análise dos efeitos do Plano Brasil Sem Miséria e da Estratégia Brasileira de Desenvolvimento Inclusivo. Caderno de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, Brasília, 25, p.22-55, 2016.
MENEZES, F.; JANNUZZI,P.M. Com o aumento da extrema pobreza, Brasil retrocede dez anos em dois. Teoria e Debate, São Paulo, n.170, março/2018. Acesso em 18/03/2018 em
PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano. Lisboa, 2014.
SUNDARAM, J. K. The MDGs and poverty reduction. In: CIMADAMORE, A.; KOEHLER, G.; POGGE, T. (Eds.). Poverty and the Millennium Development Goals. Vol.1. 1. Ed. Londres: Zed Books,2016, p. 26-44.