Artigo – “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”
Por Rosa Maria Marques – Professora titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da PUCSP e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e da Associação Brasileira da Economia da Saúde (ABrES).
Nos dias que antecederam o 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher, essa frase, uma das mais célebres de Rosa Luxemburgo, foi N vezes socializadas nos grupos de whatsapp e no facebook. Aquelas e aqueles que assim o fizeram estavam, de forma consciente ou não, dizendo que tratar a mulher igual ao homem, em todos os campos da reprodução social, somente estará de fato garantido em uma sociedade que, simultaneamente, torne livre a mulher e o homem: livre da exploração, do patriarcado, do racismo e de todas as formas de não reconhecimento da diversidade humana, seja na sua aparência e nas suas opções. Enfim, o reconhecimento da mulher como um ser que se autodetermine, com direitos iguais aos dos homens, somente é plenamente realizável numa sociedade sem classes, como resultado da construção de um “Novo Homem”, onde os princípios da igualdade e da solidariedade sejam os fundamentos primeiros de nossa sociedade. Por isso, a luta das mulheres, hoje e sempre, não está dissociada da construção de uma nova sociedade.
Faz 109 anos, em 1910, que Clara Zetkin, na II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, propôs que o 8 de março fosse considerado o dia internacional da mulher. Passados 32 anos, em 1952, a assembleia das Nações Unidas, declarou o 8 de março como o dia internacional da mulher. Antes dessas datas e depois delas, muitas foram as lutas emblemáticas realizadas ou capitaneadas pelas mulheres em todo o mundo. Muitas delas, ontem e hoje, têm sido vitoriosas. Mais recentemente, apenas para registro, destacamos a legalização do aborto conquistado pelas mulheres da Irlanda em 2018.
Apesar dos avanços alcançados pelas mulheres nesse seu longo caminhar, cujo início se perde nas brumas do passado, mantém-se, no mundo todo, situações de extrema desigualdade de tratamento entre homens e mulheres, sem falar da prática de mutilação e da existência de um verdadeiro feminicídio. O vivenciado pelas mulheres, no Brasil é, em parte, similar ao de outros lugares e países. Vejamos apenas dois aspectos de sua realidade.
No âmbito do trabalho, segundo os dados do Relatório Especial sobre Diferenças no Rendimento do Trabalho de Mulheres e Homens nos Grupos Ocupacionais, realizado pelo IBGE com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, pode-se dizer que a mulher continua a ser tratada como um “cidadão de segunda classe”. A primeira evidência disso se refere ao fato de, em 2018, o rendimento médio das mulheres entre 25 e 49 anos de idade ser 20,5% menor do que o dos homens nesse mesmo grupo etário, isto é, de representar 79,5% do rendimento médio recebido pelos homens. Registre-se que a proporção de rendimento médio da mulher branca ocupada em relação ao do homem branco ocupado é menor do que a proporção entre mulher e homem de cor preta, respectivamente de 76,2% e 80,1%. Para esse rendimento médio menor, contribui pelo menos dois fatores: o fato de as mulheres trabalharem em média 4,8 horas semanais a menos do que os homens (quando não se considera o tempo dedicado a afazeres domésticos e cuidados de pessoas); e seu afastamento do trabalho quando do nascimento de filhos, o que prejudica sua trajetória. (IBGE, 2019). O que esses dados denunciam é que pelo fato de nossa sociedade imputar à mulher a responsabilidade por cuidar da casa, dos filhos e da família, principalmente quando da presença de crianças, idosos e enfermos, ela trabalha, de forma remunerada menos e, portanto, ganha menos. O que, de fato, acontece é que ela trabalha mais para ganhar menos do que o homem. Isso porque a mulher trabalha, quando computada as horas remuneradas com as horas não remuneradas, 54,7 horas semanais, enquanto que o homem 46,7 horas (MOSTAFA et al, 2017). O trabalhar mais que é imposto à mulher constitui a segunda evidência do tratamento de “segunda classe” por ela recebido em nossa sociedade.
Para completar as informações relativas ao tratamento concedido à mulher no âmbito do trabalho, é bom lembrar que, mesmo em termos de valor médio da hora trabalhada, no grupo etário dos 25 aos 49 anos, a mulher recebe menos: R$ 13,00 em comparação a R$ 14,20. Outra informação bastante relevante é o fato de a diferença do rendimento médio recebida pelas mulheres em relação aos homens variar conforme a ocupação. Vejamos três casos. No grupo de Diretores e gerentes, embora as mulheres tenham participação de 41,8% no total dos ocupados, seu rendimento médio corresponde a 71,3% do recebido pelos homens. Entre os Profissionais das ciências e intelectuais, as mulheres, onde as mulheres são a maioria (63,0% do total), recebem 64,8% do rendimento dos homens. Entre os Médicos especialistas e Advogados, onde as mulheres participam com 52%, o rendimento médio corresponde a 71,8% e 72,6%, respectivamente, do rendimento do homem. Disso se pode concluir que, independentemente da formação e ou qualificação exigida no cumprimento das funções, a diferença de rendimento é uma constante, podendo, inclusive se acentuar quanto maior for o nível de formação exigido. Os condicionantes que levam à formação dessa diferença de rendimento é uma constante, portanto, a todas as mulheres, sem que pese as diferenças de rendimento que existem entre elas mesmas, a depender da ocupação exercida.
O segundo aspecto que merece destaque é o do feminicídio. Em 14 de março de 2018, Marielle Franco, vereadora do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Câmara Municipal do Rio de Janeiro foi assassinada. Até hoje não se sabe quem a matou e quem a mandou matar. A comoção pública que se seguiu, com milhares tomando as ruas nas principais capitais do país, e a transformação de seu nome em símbolo da luta das mulheres são indicativos de que a violência contra a mulher está cada vez menos naturalizada. Mesmo assim, o número de casos de feminicídio é preocupante no Brasil.
Segundo estudo realizado pelo IPEA (2018), em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que equivale a 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Essa taxa varia entre os estados, com destaque para o caso de Roraima, com 10 homicídios para cada 100 mil brasileiras, mais do que o dobro da taxa nacional. Ainda esse estudo nos mostra que, ao ser desagregada a população feminina pela variável raça/cor, confirma-se o que empiricamente se espera, isto é, que a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras (5,3) que entre as mulheres não negras (3,1), o que perfaz uma diferença de 71%. Além disso, o estudo também aponta que o homicídio aumentou mais, entre 2006 e 2016, entre as mulheres negras (15,4%) do que entre as brancas (8%). Já segundo o Monitor da Violência, fruto de uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, houve 4.558 homicídios de mulheres no país e, em 2018, 4.254. Embora tenha havido redução, ela foi menor do que entre os homens e muito superior à taxa média mundial (de 2,3 para 100 mil mulheres, em 2017). Além disso, aumentou o registro de feminicídio (definido como casos em que mulheres foram mortas em crimes de ódio motivados pela condição de gênero), passando de 1047 para 1.173, respectivamente, o que corresponde a uma taxa de 1,1 feminicídio por 100 mil mulheres. Em 2016, essa taxa foi de 0,7 e, em 2015, de 0,4. Deve-se, contudo, ler com cuidado essa evolução, pois como a lei 13.104, conhecida como “lei do feminicídio”, é recente, de março de 2015, há uma tendência de casos que antes não eram assim classificados o serem, apresentando-se um “falso aumento na notificação”. Vale lembrar, ainda, que a definição de feminicídio não recebe total consenso, havendo quem considere essencial computar também as mortes provocadas por aborto voluntário.
Denunciada nas manifestações e frequentadora das manchetes das mídias, essa é uma parte da dura realidade enfrentada por todas as mulheres, no Brasil e no mundo, e pela qual elas se movem. Para elas não há opção. Só lhes resta lutar e a continuar a lutar, no caminho da construção do futuro.
Referências
G1. Monitor da Violência. Disponível em https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/03/08/cai-o-no-de-mulheres-vitimas-de-homicidio-mas-registros-de-feminicidio-crescem-no-brasil.ghtml. Acesso em 04/03/2019.
IBGE. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23923-em-2018-mulher-recebia-79-5-do-rendimento-do-homem. Acesso em 05/03/2019.
IPEA. Atlas da Violência, 2018. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf. Acesso em 07/03/2019.
MOSTAFA, Joana et al. Gênero, previdência e cuidados. In: SEMINÁRIO REFORMA
DA PREVIDÊNCIA: DESAFIOS E AÇÃO SINIDICAL. Apresentações… São Paulo:
DIEESE e 16 Centrais Sindicais, 7 e 8 fev. 2017. Grupo de Trabalho do IPEA.
Disponível em:
<http://www.dieese.org.br/evento/seminarioReformaPrevidenciaApresentacao.html>. Acesso em 04/05/201