Artigo – Reforma Tributária Global
Na primeira semana de junho/2021, os ministros das finanças do G7, grupo do qual fazem parte as sete maiores economias do mundo capitalista, anunciaram em Londres um pacto para taxar os lucros das grandes empresas, inicialmente em 15%, movimento que seria “o pilar” de uma vasta reforma tributária global, ainda a ser examinada em julho na reunião do G20, em Veneza. Na sequência, a ideia ganhou força com a anunciada adesão de outros 130 países.
O projeto para o denominado imposto corporativo mínimo global, naquelas condições, parece muito pouco para conceder à iniciativa a rotulagem de “reforma tributária global”, basicamente porque os países que adotarem a iniciativa estarão manejando tributos domésticos, em especial o imposto de renda, no âmbito dos respectivos orçamentos nacionais, ao invés dos tributos essencialmente globais.
A propósito, entre os dias 25 e 27 de setembro de 2015, em Nova York, os 193 Estados-Membros da ONU adotaram formalmente a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, composta de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), por meio da qual os chefes de Estado traçaram objetivos visando resolver graves problemas até o ano 2030, a exemplo do “Objetivo 1. Acabar com a pobreza” e do “Objetivo 2. Acabar com a fome”.
No Objetivo 17 estão alinhadas estratégias para consecução da própria Agenda 2030, inclusive no tocante às finanças. Entendem os líderes mundiais que o aporte de 0,7% do PIB das grandes nações e de 0,15 a 0,2% dos países em desenvolvimento é suficiente para o financiamento dos objetivos. Tomando o PIB do G-7 da ordem de US$ 37,9 trilhões, mais US$ 29,5 trilhões dos países em desenvolvimento (o G20, menos o G7), resultaria, grosso modo, numa arrecadação em torno de US$ 324,3 bilhões/ano (265,3 mais 59,0), o que parece pouco, diante das presumíveis necessidades de recursos para superação dos objetivos 1 e 2 da Agenda 2030 da ONU. (OBS. A fonte dos dados é o Banco Mundial, tendo o PIB mundial atingido US$ 87,7 trilhões em 2020).
Com a indicação do uso do instrumental tributário, diversas iniciativas já foram aventadas no plano internacional, algumas até adotadas, a exemplo de certas práticas na União Europeia, casos da tributação sobre passagens aéreas, movimentação de combustíveis, serviços de telecomunicações e sobre a emissão de CO2. Fala-se também numa possível tributação sobre os exorbitantes lucros do setor financeiro e dos seus dirigentes. Contudo, tais circunstâncias econômicas não se encaixam como hipóteses de fatos geradores com características globais.
Thomas Piketty, no seu O capital no século XXI (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p.501/2), propõe um imposto mundial sobre o capital a incidir progressivamente “sobre o valor líquido dos ativos controlados por cada pessoa”. A hipótese, entretanto, também está marcada por características próprias dos tributos nacionais. Além disso, é possível perceber na ideia de Piketty a presumível dificuldade operacional para alcançar mundialmente os potenciais sujeitos passivos, os contribuintes, o que resultaria em baixa produtividade fiscal.
Resta a muito promissora possibilidade da implantação de um tributo internacional com boa base de incidência (volume de negócios), com características essencialmente internacionais, ou seja, que o fato gerador a ele relacionado envolva agentes internacionais residentes ou estabelecidos em países diferentes, mesmo que eventuais operações sejam realizadas na mesma praça. A hipótese que se encaixa nessa configuração é um tributo internacional sobre todas as transações cambiais, a ser arrecadada em âmbito global, com uma característica toda especial, a ser adotado completamente fora dos orçamentos nacionais, com o objetivo de evitar interferências dos dirigentes nacionais, num contexto de nova governança global, num aperfeiçoamento da proposta do economista norte-americano James Tobin, nos anos setenta do século passado.
O lançamento e a arrecadação ficariam a cargo do necessário sujeito ativo, que poderiam ser o FMI, o Banco Mundial, ou até a ONU, presumindo-se a pactuação de importantíssimo tratado internacional para tal fim.
A proposta presume a atuação na atividade financeira internacional buscando tributar o extraordinário fluxo financeiro global (hipótese de incidência), cujo fato gerador seria a realização de operações cambiais internacionais, tendo como sujeito passivo (o contribuinte) apenas o remetente do recurso. A base de cálculo seria o valor de cada operação, sobre o qual incidiria uma alíquota de 0,1% (muito se fala em alíquotas de 0,01% a 1%). O local da operação seria sempre o país do pagador.
No final de 2020 o saldo dos ativos financeiros globais era da ordem de US$ 582,0 trilhões, o que corresponde a 6,6 vezes o valor do PIB mundial de US$ 87,7 trilhões (Fonte: Banco Internacional de Compensações – BIS).
Consta que um volume de operações cambiais de origem financeira de US$ 5,5 trilhões ocorre diariamente (Fonte: BIS), que, submetida a hipotética tributação com alíquota de 0,1%, resultaria numa arrecadação diária de US$ 5,5 bilhões, ou US$ 1,375 trilhão anual, em 250 dias úteis, a ser aplicado pelo sujeito ativo exclusivamente nas nações mais pobres do mundo em ações nas áreas da educação, saúde, habitação, saneamento, questões climáticas e, principalmente, no combate à fome.
Alguns detalhes ainda merecem destaque no tocante à demonstração da viabilidade na adoção do tributo global aqui referido: não dependeria da generosidade dos dirigentes dos países ricos; não afetaria a livre movimentação de capitais; poderia contribuir significativamente para diminuição ou até eliminação do movimento de dinheiro sujo no mundo e o esvaziamento dos paraísos fiscais; favorece o combate à guerra fiscal entre países; pode alcançar todas as operações cambiais, inclusive as realizadas por bancos centrais; seria necessária a instalação de uma robusta plataforma de pagamentos eletrônicos.
Piketty diz que a sua ideia de um imposto mundial sobre o capital é uma utopia útil (op. cit, p. 501). O que está aqui proposto não é diferente. O que conforta é a certeza de que a humanidade não avança sem o concurso dos utopistas.
Paulo Dantas da Costa é ex-presidente do Cofecon.
Artigo publicado originalmente na revista Carta Capital de 14 de julho de 2021