Artigo – Tributar os super-ricos para financiar o “Mais Bolsa Família”

Por Eduardo Fagnani – Professor Doutor em Economia pela Unicamp

(Artigo originalmente publicado na 38ª edição da revista Economistas)

 

Em função do golpe parlamentar e da desastrosa política de “austeridade” econômica adotada a partir de 2015 – que provocou forte recessão, seguida por crescimento residual nos últimos cinco anos –, o PIB per capita do Brasil, deverá fechar 2019 em patamar próximo ao verificado em 2008.

Estima-se que a pobreza extrema em 2019 deve retroceder aos parâmetros de 2004. O país, que em 2014 havia saído do Mapa Mundial da Fome elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, voltou a ser incluído nesse vergonhoso ranking: em 2018, a proporção de domicílios que apresentam insegurança alimentar era superior ao patamar observado em 2004 (IBGE 2020).

Em 2019, quase 80 milhões de brasileiros recebiam rendimentos inferiores ou equivalentes a meio salário-mínimo por mês (TROVÃO, 2020); cerca de 60 milhões estavam desempregados, desalentados ou empregados em ocupações precárias; e 26,8 milhões encontravam-se subutilizados (IBGE, 2020-B).

Com a pandemia esse quadro se agravou. Em maio de 2020, havia mais pessoas fora do mercado de trabalho e desempregadas do que trabalhando. Quase 70% da força de trabalho passaram a receber o Auxílio Emergencial de R$ 600, o que reduziu a pobreza extrema e fez com que a desigualdade de renda chegasse ao seu menor nível histórico, conforme estudos do sociólogo Rogério Barbosa.[1]

Com o fim do Auxílio Emergencial, a tarefa que se impõe é enfrentar o cenário de trabalho zero, fome e miséria amplificados. É urgente introduzir um programa de renda básica que substitua a falta de salário e que considere os êxitos do programa Bolsa-Família. Saboia, Roubaud e Razafindrakoto (2020) apontam, corretamente, que “o Bolsa Família é um sucesso mundial, deve ser preservado e ampliado para dar conta, não apenas da crise da pandemia, mas das desigualdades sociais que o país já possuía, que se ampliaram em 2020, e que continuarão presentes em 2021”.

Nesta perspectiva, o Partido dos Trabalhadores – PT apresentou ao Congresso Nacional o projeto “Mais Bolsa Família” (Projeto de Lei n. 4086/2020). A ideia é aumentar o valor e ampliar a base de beneficiários, para incluir a população considerada vulnerável pelo critério da renda. A proposta altera a linha de extrema pobreza de R$ 89 para R$ 178 de renda mensal per capita; e a linha de pobreza, de R$ 300 e para R$ 600 de renda mensal per capita. Com isso, estima-se que o número famílias beneficiadas subiria de 14 milhões para 30 milhões ao custo de R$ 19 bilhões mensais. “Todas as famílias brasileiras com renda por pessoa de até R$ 600 passam a ser atendidas pelo Mais Bolsa Família”, explicou a ex-ministra Tereza Campello, autora da iniciativa. “Queremos que o benefício seja universal entre os vulneráveis”, explicou.[2]

Em função da gravidade da crise, o financiamento do “Mais Bolsa Família” não pode seguir a fórmula secular utilizada pelas classes dominantes de tirar dos pobres para dar aos ricos e aos paupérrimos. A exemplo do que ocorreu nos países capitalistas centrais no enfrentamento das crises de 1929 e de 1945, a tributação progressiva das altas rendas e riquezas dos super-ricos é a alternativa a ser adotada (PIKETTY, 2014).

É digno de nota que, enquanto as condições de vida dos brasileiros pioraram de forma dramática entre 2010 e 2020, em igual período, o número de bilionários brasileiros subiu de 30 para 238, cuja fortuna acumulada passou de R$ 217,7 bilhões para R$ 1,6 trilhão (valores correntes). Em proporção do PIB, essa fortuna agregada passou de 5,9% para, aproximadamente, 23%[3].

O paradoxo é que o sistema tributário brasileiro possui mecanismos que isentam de tributação as camadas de altas rendas e grande parte das rendas do capital. A isenção da tributação de lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas é um desses mecanismos.

A vigência de anomalias desse tipo contraria o “princípio da equidade” formulado originalmente pelo economista liberal clássico Adam Smith. Há quase cem anos, a conformação dos regimes de tributação dos países capitalistas centrais funda-se na ideia de que os impostos devem ser cobrados de acordo com a capacidade de contribuição dos indivíduos. No Brasil, os princípios da “igualdade material tributária” e da “capacidade econômica do contribuinte” estão inscritos na Constituição da República[4]. Mas, na prática, não são observados. De forma categórica, pode-se afirmar sistema tributário brasileiro é inconstitucional.

Na comparação internacional, o Brasil ocupa uma das últimas posições relativas na tributação da renda e do patrimônio. Em 2015, na Dinamarca, esses dois itens, em conjunto, representam 67% da arrecadação total de impostos; nos EUA, 60%; no Brasil, apenas 23%. Por outro lado, estamos na dianteira no que se refere à tributação sobre o consumo: 49,7% da arrecadação de imposto no Brasil provem desse item, enquanto a média da OCDE é de 32,4%; e nos EUA, 17%.

Assim, não é verdade que a nossa carga tributária seja elevada. Mas é verdade que ela é mal distribuída: concentra-se sobre o consumo (que afeta os mais pobres e a classe média), mas é absolutamente residual sobre as altas rendas e os altos patrimônios, privilegiando os super-ricos. Há, portanto, profunda assimetria no peso dos impostos no cofre dos ricos e no bolso dos pobres.

A injustiça fiscal materializa-se no fato de que os tributos que incidem sobre o consumo capturam parcela maior da renda dos segmentos mais vulneráveis, quem tem elevada propensão para consumir. Estudos revelam que os 20% mais pobres têm 49% da sua renda capturada pelo pagamento de tributos (ZOCKUN,2005). E, em contrapartida, mais de 70% da renda dos super-ricos é isenta de tributação, sobretudo em função da vigência de obscenidades tributárias como, por exemplo, a dedução de juros sobre o capital próprio e a não tributação da distribuição de lucros e dividendos.

O princípio liberal da progressividade também não é observado no Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF). A mesma alíquota de 27,5% é aplicada tanto para quem ganha R$5 mil por mês, quanto para quem ganha R$500 mil por mês. Em nações capitalistas relativamente menos desiguais, o IRPF constitui-se no “coração” do sistema tributário. A arrecadação média do tributo na OCDE é de 8,5% do PIB; no Brasil, 2,5% do PIB.

O princípio da equidade também não se aplica na tributação da riqueza e do patrimônio. O Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), aprovado pela Constituição Federal de 1988, nunca foi implantado. A alíquota máxima do imposto sobre altas heranças (8%) é muito inferior às praticadas por países da OCDE, as quais, frequentemente, podem ultrapassar o patamar de 30%. A propriedade rural, num país com presença marcante do agronegócio, está praticamente isenta de tributação. O Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) é caricatura perfeita da tributação nacional: ele incide sobre motos e automóveis utilizados por entregadores de pizza e motoristas de plataformas, mas não taxa helicópteros, jatos e iates utilizados pelos super-ricos.

Entretanto, as propostas prioritárias de Reforma Tributária que tramitam no Congresso Nacional[5] não enfrentam essas anomalias e inconstitucionalidades. Tratam, unicamente, da “simplificação” da tributação do consumo e desconsideram as obscenidades da tributação da renda e do patrimônio, perpetuando a situação na qual o ônus dos impostos recai sobre as classes menos favorecidas.

É importante informar que, diante desse quadro, os partidos da oposição apresentaram proposta alternativa que também tramita no Congresso Nacional. Trata-se da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável” (emenda substitutiva global a PEC 45 de n. 178) que aponta para a necessidade de redistribuir as bases de incidência dos tributos, reduzindo os que recaem sobre o consumo e ampliando os que recaem sobre a renda e o patrimônio.

Dois estudos serviram de ponto de partida para a elaboração da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável”. O primeiro apresenta amplo diagnóstico.[6] O segundo faz propostas para mudar.[7] Conclui-se que, do ponto de vista técnico, não há nenhuma limitação para a justiça fiscal no Brasil: “É tecnicamente possível que o Brasil tenha sistema tributário mais justo e alinhado com a experiência dos países mais igualitários, preservando o equilíbrio federativo e o Estado Social inaugurado pela Constituição de 1988”.

O contexto da pandemia de Covid-19 e da crise econômica levou os formuladores desses estudos a elaborarem o documento “Tributar os super-ricos para reconstruir o país” [8], que prioriza oito medidas de tributação das altas rendas e dos grandes patrimônios.

Com a retomada do crescimento, estima-se que essas medidas possam gerar recursos adicionais da ordem de R$292 bilhões por ano. A maior parte desse acréscimo de receitas virá da implantação de nova tabela progressiva do IRPF, da tributação de lucros e dividendos e do fim da dedução dos juros sobre o capital próprio, seguida pelo Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), pela majoração da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de setores econômicos com alta rentabilidade, pela criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas e pelas mudanças nas regras do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).

É importante ressaltar que a efetividade das propostas apresentadas exige a revogação do congelamento dos gastos introduzido pela Emenda Constitucional n. 95/2016. A expansão da pobreza, da desigualdade e da insegurança laboral requer que o Estado de Bem-estar seja reforçado, sobretudo na ampliação da cobertura dos trabalhadores inseridos em ocupações precárias. Não há como enfrentar a crise sem eliminar as amarras que impedem o Estado de ampliar seus gastos e investimentos.

O caráter redistributivo das medidas propostas é elevado. No caso do IRPF, a nova tabela progressiva aumenta o limite de isenção para renda líquida próxima de três salários-mínimos mensais (10,1 milhões de trabalhadores, 34,1% dos contribuintes) e amplia as alíquotas para rendas mais altas (0,3% da população). A alíquota mais elevada do IRPF (45%) incide sobre 208 mil contribuintes (0,098% da população brasileira). O Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) incide sobre patrimônios superiores a R$10 milhões, privilégio de 0,028% da população brasileira. A Contribuição Social sobre Altas Rendas das Pessoas Físicas incide sobre aproximadamente 208 mil pessoas, 0,098% da população brasileira.

Além dos R$292 bilhões de acréscimos de receitas tributárias, o estudo aponta para a necessidade de se reverem as isenções fiscais (mais de R$ 400 bilhões por ano) e a sonegação (mais de R$ 600 bilhões por ano).

São recursos mais que suficientes para financiar o programa “Mais Bolsa Família” e, assim, enfrentar o cenário de salário zero.

Referências

IBGE (2020- B). PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 12,9% e taxa de subutilização é de 27,5% no trimestre encerrado em maio de 2020. Rio de Janeiro: IBGE: Agência de Notícias, 30/06/2020.  https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28110-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-12-9-e-taxa-de-subutilizacao-e-de-27-5-no-trimestre-encerrado-em-maio-de-2020

IBGE (2020). Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro: IBGE https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101749.pdf

PIKETTY, Thomas (2014). O Capital no Século XXI / Thomas Piketty, 1. ed., Rio de Janeiro: Intrínseca.

SABOIA, J; ROUBAUD, F; E M. RAZAFINDRAKOTO. O papel do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial. Valor, 6/11/2020.

TROVÃO, Cassiano J. B, Marques (2020). A pandemia de Covid-19 e a desigualdade de renda no Brasil: um olhar macrorregional para a proteção social e os auxílios emergenciais. Natal: UFRN (Departamento de Economia. Texto para Discussão 2)

ZOCKUN, Maria H. (2005). Aumenta a regressividade dos impostos no Brasil. Informações – FIPE, n. 297, 2005

[1]      Auxílio emergencial reduz pobreza e desigualdade cai a menor patamar da História, mas custo é insustentável. Por Cássia Almeida, Globo, 16/08/2020. https://oglobo.globo.com/economia/auxilio-emergencial-reduz-pobreza-desigualdade-cai-menor-patamar-da-historia-mas-custo-insustentavel-24589106

[2]      PT apresenta proposta de Bolsa Família turbinado para fazer frente ao Renda Brasil. Por Carolina Freitas, Valor, 24/07/2020. https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/07/24/pt-apresenta-proposta-de-bolsa-familia-turbinado-para-fazer-frente-ao-renda-brasil.ghtmll

[3] Número de brasileiros bilionários salta de 18 para 30, aponta “Forbes”. Uol, 9/03/2011. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2011/03/09/numero-de-brasileiros-bilionarios-salta-de-18-para-30-aponta-forbes.htm?cmpid=copiaecola;

[4]      Artigos 5º e 145º, CF/88.

[5]      Propostas de Emenda Constitucional n. 45/2019 (Câmara dos Deputados) e n.110/2019 (Senado); e Projeto de Lei nº 3.887/2020.

[6]      A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas / Eduardo Fagnani (organizador). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. 804 p. ISBN: 978-85-62102-27-1/ CDU 336.22. http://plataformapoliticasocial.com.br/a-reforma-tributaria-necessaria/

[7]      A Reforma Tributária Necessária: Justiça Fiscal é Possível: Subsídios para o Debate Democrático sobre o Novo Desenho da Tributação Brasileira / Eduardo Fagnani (organizador). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018. 152 p. ISBN: 978-85-62102-30-1804. http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2018/12/Livro_completo.pdf

[8]      Tributar os Super-ricos para Reconstruir o País. https://plataformapoliticasocial.com.br/tributar-os-super-ricos-para-reconstruir-o-pais/

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