Combater desigualdades e mudar a Economia

  • 20 de janeiro de 2022
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O avanço da nova variante da covid-19 na última semana acende um alerta se teremos entrado em 2022 sem saber ao certo se já terminamos o longo 2020, que durou 2021 inteiro. A boa notícia é que os dados apontam para quadros de baixa gravidade e uma letalidade baixíssima para quem tomou as duas doses de vacina. A má notícia é que o Presidente da República continua negando a importância da vacinação, falando até mesmo que não levará sua filha de 11 anos para se imunizar.

A crise da covid atingiu o Brasil em cheio, e a má condução política da crise, o negacionismo e terraplanismo que dominaram o discurso oficial desde os primeiros dias pioraram em muito o que poderia ter sido a resposta brasileira. Mas, além disso, a gravidade da crise também foi acentuada por ter atingido a economia brasileira em um momento em que as perspectivas para 2020 já não eram boas. Nos últimos dois trimestres de 2019 o PIB sofreu desaceleração, o crescimento daquele ano foi de apenas 1,1%, com o desemprego batendo 11%.

A fragilidade da economia já em 2019 apontava que os remédios escolhidos para a recuperação pelos governos Temer e Bolsonaro – mais cortes e menos direitos – não haviam demonstrado resultados; muito menos entregado o prometido. A austeridade se provou ser a cloroquina da economia: sem comprovação de resultados em qualquer canto do mundo, era recomendada e seguida mais por profissão de fé e por interesse político do que por ciência.

O cenário econômico instável já apontava para um aprofundamento das múltiplas desigualdades sociais, a pandemia aprofundou este impacto. Não há dúvida de que o efeito mais perverso da pandemia foi o alargamento das desigualdades. As mulheres foram as primeiras a perder o emprego e as últimas a recuperá-lo. O período de confinamento significou um aumento da violência doméstica e da sobrecarga de trabalho de cuidado. A população negra também perdeu mais rapidamente seus postos de trabalho, assim como teve o maior achatamento de seus rendimentos. Uma doença que chegou pela elite branca que viajava à Europa teve suas maiores taxas de letalidade na população preta e nas periferias das grandes cidades. A juventude, que historicamente enfrenta maiores taxas de desemprego, viu essa diferença se alargar ainda mais, e os poucos que conseguiram permanecer com alguma fonte de renda passaram a encontrar riscos cada vez maiores e condições extremamente precárias e vulneráveis – sem qualquer direito.

O ano de 2020 só não foi pior porque a oposição conquistou o Auxílio Emergencial, que impediu que quase 30 milhões de brasileiros entrassem em situação de pobreza extrema e impediu uma queda mais dramática da atividade. Já nos últimos meses do ano, quando as transferências foram cortadas pela metade, vimos uma desaceleração da economia e piora do quadro social. A experiência nos ensina que renda para a população mais pobre e garantia de condições dignas de vida são o que dinamiza a economia. Disto, sim, temos comprovação.

As dificuldades foram agravadas quando em 2021 passamos os três primeiros meses do ano sem qualquer auxílio, e diariamente vimos notícias nos jornais dando conta do retorno da fome em um contexto de cada vez maior tragédia social. Quando o auxílio voltou, voltou praticamente cortado pela metade (metade!), que mal era suficiente para pagar um botijão de gás. Enquanto isso, o país sofreu com o aumento de casos e mortes pela segunda onda do coronavírus, ao passo que Bolsonaro se recusava a comprar vacinas.

O desemprego chegou a ultrapassar 14% e hoje ainda se encontra em 12%. Na juventude, essa taxa chegou a ultrapassar 30%. A subutilização e o desalento cresceram muito em todas as faixas etárias e, das vagas de trabalho criadas em 2021, 54% foram na informalidade. O rendimento médio do trabalho caiu, puxado pela queda mais brusca nas faixas de renda mais baixas, e as famílias terminaram o ano mais pobres. Junto a isso, a massa de rendimentos, que considera o total ganho por todas as pessoas ocupadas, apresentou queda em todos os trimestres, evidenciando a deterioração das condições de vida.

Um dos grandes problemas que marcou 2021 foi a aceleração da inflação, que já vinha do final de 2020, e que encerrou esse ano acima dos dois dígitos, em 10,06%. Entre os principais responsáveis, estiveram os preços administrados, como combustíveis e energia elétrica. A energia elétrica subiu por conta da crise energética que vivemos, que poderia ter sido em muito atenuada com um melhor planejamento energético, uma vez que o Brasil na última década reduziu em muito a sua dependência de energia hídrica. Os combustíveis possuem impacto em cadeia sobre os valores dos fretes e do transporte, e subiram mais no Brasil do que em quase todos os demais países do mundo por conta da irresponsabilidade da atual política de preços da Petrobrás. Em parte, a alta foi motivada pela recuperação dos preços do petróleo, que passaram 2020 reprimidos. Porém, em parte se deveu à desvalorização do real frente ao dólar, cujo impacto se acentuou devido à ausência de uma política de suavização de preços por parte da Petrobras, mesmo com lucros crescentes – refletindo uma visão que prioriza a remuneração do acionista de curto prazo do que do bom funcionamento da economia como um todo.

Outros itens que puxaram a inflação foram aqueles que pesam mais na cesta de consumo dos mais pobres, como alimentos e gás de cozinha. Tudo isso, em um cenário de contração da renda e elevado desemprego, corroeu ainda mais o poder de compra das famílias, regredindo em conquistas tão importantes de valorização da renda dos trabalhadores e trabalhadoras. Para se ter uma ideia, em 2002 a cesta básica custava 80% do salário-mínimo. Com a política de valorização do salário-mínimo, ganhos reais em negociações coletivas, aquecimento do mercado de trabalho com a estabilidade dos preços, em 2014, a cesta custava 48% do mínimo. Hoje, voltou a custar 63%. Ou seja, com mil reais em 2002 após comprar uma cesta básica sobrava menos de 200 reais. Em 2014, mais de 500. Agora, sobram só 370.

O reajuste do salário mínimo anunciado pelo governo esta semana foi ligeiramente abaixo da inflação, em 10,04%. O mínimo-horário, que baliza a remuneração dos trabalhadores horistas definidos pelo governo, ficou em R$5,51. O governo optou por calcular a hora com base no salário mínimo considerando cinco semanas úteis por mês – o que raramente ocorre – em um cenário em que larga parcela dos trabalhadores encontra-se em contratos horistas, intermitentes e, muitas vezes, precários. A perspectiva é de nova perda real do poder de compra, se nada ocorrer…

Por trás da alta dos preços, esteve uma pressão de custos. A descoordenação da atividade pelo mundo por conta da pandemia gerou uma desarticulação das cadeias produtivas globais, gerando escassez de insumos e equipamentos, o que pressionou os preços dos bens finais. A taxa de câmbio, em muito desvalorizada durante o ano todo, pressionou o valor dos produtos importados e aumentou relativamente a rentabilidade das exportações ante a venda doméstica – ainda mais em um cenário de demanda interna reprimida. Vale lembrar que, para além de um cenário externo de incertezas, parte da desvalorização cambial também é fruto das enormes irresponsabilidades políticas e sanitárias promovidas por Bolsonaro. Quando um presidente nega a eficácia da vacina ou chama o povo para ir às ruas defender uma intervenção no Supremo Tribunal Federal, são geradas incertezas que têm reflexos na taxa de câmbio.

Para encarar a alta da inflação, o Banco Central optou por uma escalada exacerbada da taxa de juros, abrindo mão de outros instrumentos que poderiam contribuir para a suavização das flutuações cambiais, e ignorando as condições de demanda da economia – o fato de três em cada quatro famílias estarem endividadas – e o elevado grau de endividamento das empresas. Inclusive, na primeira semana do ano, Bolsonaro vetou o projeto de lei de reescalonamento das dívidas das micro e pequenas empresas (MPEs), permitindo que várias dessas empresas – que são as maiores geradoras de empregos do país – continuem caminhando para a falência.

Vamos terminar o ano com o país mais pobre, elevado desemprego, o retorno da fome – tendo duas vezes a população de Portugal passando fome e mais da metade da população brasileira em situação de insegurança alimentar –, alta inflação, juros galopantes e expectativa de baixo crescimento. Com efeito, o crescimento esperado de 4,5% para o ano é como se a economia tivesse ficado estagnada no final de 2019, quando o PIB caiu 4,1%.

Para 2022, a expectativa é de estagnação, com 0,36% projetado para o PIB no último Boletim Focus. Se nada for feito, o desemprego deve continuar elevado, e a expectativa é que a inflação termine o ano em 5% (com o centro da meta em 3,5%), com a taxa básica de juros voltando aos dois dígitos. Começamos um ano em que o investimento vai ser tão necessário para a retomada da atividade com a diretoria do BNDES anunciando que tem como meta subir a taxa de juros de longo prazo, quando a função de um banco de desenvolvimento, ainda mais nesse contexto, deveria ser justamente o oposto, de garantir taxas de juros mais atrativas para o investimento atuando para atenuar a tradicional prociclicidade do crédito privado – que só aparece nos momentos de boom.

Por fim, a tramitação do Auxílio Brasil repetiu a dinâmica do Auxílio Emergencial: sua parte boa é fruto da disputa da oposição no Congresso, seus aspectos negativos foram propostos pelo Executivo. O avanço importante esteve na elevação do valor médio e no número de beneficiários, além de sua inclusão na Constituição. Por outro lado, o desenho tornou um programa consolidado e reconhecido, como era o Bolsa Família, em algo confuso, com uma multiplicidade de objetivos que não cabem em um programa de combate à fome e à miséria. Mas a comprovação de resultados e eficácia não parece algo que preocupa muito o atual governo. Ainda, há dúvidas sobre a capacidade de gestão do programa, com o corte brusco de verbas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) – responsável pelo Cadastro Único (CadÚnico). No ano passado, o SUAS recebeu menos da metade do valor orçado para o último ano efetivamente empenhado e que sofreu corte de 70% desde o início do governo Bolsonaro – recebendo o menor orçamento da década em 2021 – quando nunca antes se fez tão necessário.

Da economia que temos à economia que queremos

Precisamos de uma agenda que enfrente hoje os maiores problemas do Brasil, que são a volta da fome, o desemprego e as desigualdades. E que encare o problema global das mudanças climáticas, que já assola a vida de milhões de pessoas no Brasil e do mundo, colocando no centro a necessidade da transição ecológica. O Brasil iniciou este século sendo referência mundial no combate à fome e no crescimento com inclusão social, temos condições de nessa década mostrar que é possível e urgente compatibilizar o desenvolvimento inclusivo com o respeito ao meio ambiente.

Para isso, precisamos retomar o papel do Estado, não só na reconstrução, mas no planejamento, construindo um programa de longo prazo, que não olhe só para o próximo ano, mas que pense o desenvolvimento para a próxima década. Uma agenda para o futuro depende da existência deste futuro, da existência de um planeta que garanta condições de sobrevivência nesse futuro. Não há dúvida dos impactos reais das mudanças climáticas. Por um lado, as secas prolongadas e a crise hídrica que enfrentamos na última década, por outro, as chuvas fortes que provocaram tragédias na Bahia no fim de 2021 e em Minas Gerais no início de 2022. Além disso, o aumento significativo de doenças respiratórias nas cidades, que afetam desproporcionalmente a população preta e periférica. Nós, que já fomos exemplo mundial de que é possível crescer distribuindo renda – e que distribuir renda gera crescimento – podemos ser exemplo de um modelo de desenvolvimento inclusivo com respeito ao meio ambiente.

O combate às desigualdades pode ser visto como uma oportunidade para o desenvolvimento. O combate às desigualdades sociais, climáticas, de gênero, de raça. Universalizar o saneamento básico pode ser uma oportunidade de geração de empregos. Repensar a economia do cuidado, trabalho invisibilizado feito pelas mulheres pode ser uma fonte de geração de renda. O combate à fome além de uma urgência humanitária pode ser uma oportunidade para geração de empregos e de repensar a relação extrativa de parte da produção de alimentos. A criação de oportunidades educacionais e de desenvolvimento tecnológico inclusivo é uma oportunidade de desenvolvimento.

Além disso, um programa que olhe para o futuro precisa olhar para a criação de oportunidades para as próximas gerações. Hoje a juventude é quem mais sofre com a crise. Um terço dos/as jovens brasileiros estão desalentados, sem qualquer perspectiva para sequer procurar trabalho. Daqueles que estão no mercado de trabalho, um terço está desempregado. Daqueles poucos que trabalham, um em cada cinco trabalha menos horas do que gostaria, recebendo também menos do que precisa. Há ainda quase 15% dos que estão ocupados que trabalham jornadas exaustivas, de mais de 44h, muitas vezes recebendo menos de um salário mínimo.

Estes são os postos de trabalho criados pela Reforma Trabalhista – precários, exaustivos e sem direitos. Depois de cinco anos da reforma, temos os mais altos níveis de desemprego da história, rendimentos do trabalho decrescentes e a crescente precarização. Hoje, pouco mais de 40% dos trabalhadores possuem contratos de trabalho formais, quando já chegaram a ser mais de 75%. A falta da formalidade não só elimina os direitos como elimina a estabilidade dos trabalhadores, o que prejudica também o planejamento das famílias. Se há segurança de manutenção do emprego e, em caso de perda, de acesso ao seguro-desemprego, é possível planejar construir uma casa, comprar uma geladeira, e adiar a entrada de adolescentes e jovens no mercado de trabalho, podendo permanecer mais tempo estudando.

Precisamos voltar a construir um país que dê orgulho de ser brasileiro, em que as famílias possam fazer um churrasco no fim de semana para comemorar que o filho passou na faculdade. Que 2022 seja o último ano que a gente começa só torcendo pelo seu final.

Matéria originalmente publicada no portal Outras Palavras. Por Ana Paula Garcia, Beatrice Fontenelle-Weber, Ligia Toneto, Matias Cardomingo e Rodrigo Toneto

* Ana Paula Garcia é graduanda em economia na FEA-USP; Beatrice Fontenelle-Weber é doutoranda em economia pelo Insper; Ligia Toneto é mestranda em economia pelo IE-Unicamp; Matias Cardomingo é mestre em economia pela FEA-USP e pesquisador do MADE-USP; Rodrigo Toneto é doutorando em economia pela Queen Mary University of London e pesquisador do MADE-USP. Todos os autores integram a rede Desajuste: Economia Fora da Curva (@desajusteecon)

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