É a reforma tributária de que precisamos?
Artigo de opinião de Roberto Bocaccio Piscitelli, membro da Comissão de Política Econômica do Cofecon
A proposta de Reforma Tributária, tal como inicialmente anunciada, com base no parecer preliminar do relator, Dep. Aguinaldo Ribeiro, suscita muitas dúvidas, não só porque questões importantes serão tratadas por lei complementar, como também porque seus impactos serão avaliados após a definição das alíquotas, mas, sobretudo, em virtude de a transição para o novo sistema prever sua implementação em até 50 anos.
Só quem não conhece o Brasil não faz ideia do que pode acontecer nos próximos 50 anos, em termos da legislação propriamente dita e ainda mais na certeza de que o Brasil e o mundo serão muito diferentes. Quem viver (?), verá…
Não se defende a ideia de que o texto constitucional deve chegar aos mínimos detalhes, como, por exemplo, fixar alíquotas de tributos; ou simplesmente criticar o fato de se valer de leis complementares, mesmo que se saiba que a previsão de uma lei dessa hierarquia muitas vezes encobre o fato de se ter um impasse na regulamentação de matérias controvertidas ou mesmo servir para impedir o avanço desejável no entendimento de determinadas questões.
Fundamental é a percepção de que a PEC é apresentada como a primeira etapa de um processo mais amplo de reforma: a unificação dos tributos sobre o consumo. A segunda etapa – cuja consecução ninguém aposta que ocorrerá – vai tratar dos tributos incidentes sobre a renda e o patrimônio. Se na primeira busca-se maior “eficiência”, com menores custos, no que constitui a simplificação do sistema, na segunda se priorizaria a busca de uma maior “justiça” fiscal, maior equidade na tributação.
No entanto, a promessa de simplificação, com a redução do número de tributos, é parcial, à medida que um IVA dual, convertendo 5 tributos em 2, instituindo-se a contribuição sobre bens e serviços – CBS, compreendendo IPI, PIS e COFINS, de âmbito federal, paralelamente ao imposto sobre bens e serviços – IBS, de âmbito subnacional, compreendendo ICMS, estadual, e ISS, municipal. É curioso, aliás, a diferença da denominação, pois enquanto o imposto não tem destinação específica, a contribuição é vinculada a determinado tipo de aplicação.
Argumenta-se que o IVA dual terá uma alíquota única como regra, mas, como sói no Brasil, haverá exceções, e “aí é que mora o perigo”. Elas já são tantas, anunciadas previamente, que devem multiplicar-se ao longo da tramitação da Proposta (e mais com o tempo). Embora se reconheça que são consideráveis as diferenças setoriais, seguramente irão beneficiar-se das maiores vantagens (= menores alíquotas) os setores politicamente mais organizados, mais poderosos, como, por exemplo, o agropecuário. Há muitas condicionantes nessas particularidades, que envolvem, aliás, grandes decisões políticas. Só para colocar em discussão, será melhor subsidiar ou atribuir uma alíquota inferior ao setor de transportes coletivos urbanos, ou simplesmente oferecer transporte público gratuito à população? Será preferível instituir complexos sistemas de tributação diferenciada para determinados consumidores de produtos básicos ou simplesmente fornecer gratuitamente determinados produtos e serviços à população mais vulnerável?
Admite-se até que a reforma não seja passível de uma só vez, e tenha sua implementação fatiada, para avaliação progressiva de seus efeitos, mas essa gradação, essas sucessivas tentativas e erros não encobrirão uma enorme incerteza quanto à intensidade e mesmo à direção da reforma?
O Funde de Compensações aos Estados e Municípios, pelas supostas perdas com a extinção dos atuais impostos de suas respectivas competências, começará com R$ 8 bilhões em 2029, chegando a R$ 40 bilhões em 2033, mas estes valores são até certo ponto teóricos, se levarmos em conta os impasses criados em torno das compensações resultantes da chamada Lei Kandir.
Prevê-se também um Fundo de Compensação de Benefícios Foscais, também custeado pela União, de 2025 em diante, elevando-se de R$8 bilhões a R$ 32 bilhões, elevando-se nos quatro primeiros anos e reduzindo-se nos quatro seguintes. Mas esses valores seriam destinados às indústrias que se beneficiam de incentivos fiscais previstos nas legislações estaduais.
A “promessa” é um tanto contraditória, pois a disposição de eliminar gradualmente o impressionante volume de renúncias fiscais no plano federal se contrapõe à manutenção da generosidade dos Erários subnacionais, tudo bancado pelo conjunto dos contribuintes de todo o País.
A origem e o vigor dos apoios à Proposta em tramitação, que não tem nenhuma discussão no âmbito da população de um modo geral, é uma evidência de que ela tem tudo para ser aprovada.
Roberto Bocaccio Piscitelli – Economista e contador, mestre em Administração (UnB), especialista em Administração Econômica e Financeira (Universidade de Paris I) e em Política e Administração Tributária (FGV). Professor na UnB. Consultor legislativo da Câmara dos Deputados. Membro da Comissão de Política Econômica do Cofecon.