Fernando Aquino: Manutenção de estado de bem-estar social. Quais são as possibilidades futuras?
Entrevista concedida pelo conselheiro federal Fernando Aquino ao Instituto Humanitas Unisinos, publicada no dia 7 de setembro de 2016.
Quando se trata de discutir os rumos da economia e os modos de enfrentar as desigualdades sociais e a pobreza, é preciso “focarmos no longo prazo”, ou seja, “num projeto de país”, diz Fernando de Aquino Fonseca Neto na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail. Para ele, em meio às crises política e econômica que o país enfrenta, “essa discussão tem ficado à margem”.
Entre as medidas que poderiam ser adotadas no curto prazo, o economista defende a redução dos juros da dívida pública, que “são exorbitantes” e comprometem “uma parcela inaceitável da despesa pública”, e o aumento ou retorno de alguns tributos específicos, como a CPMF, para “incentivar o crescimento e a distribuição de renda”.
Apesar do déficit das contas públicas, o economista afirma que é “possível” e “desejável” dar continuidade aos programas sociais, “desde que o governo aumente a tributação”. O aumento dos impostos é justificável, frisa, porque “a carga tributária entre nós é muito mal distribuída. Os mais ricos que residem no Brasil pagam pouco imposto e é sobre eles que teríamos muito espaço para elevar a carga tributária. Recursos assim arrecadados seriam suficientes para manter o controle das contas públicas ao longo do tempo, os programas sociais e o enfrentamento das desigualdades e ainda promover medidas de incentivo ao desenvolvimento socioeconômico do país”.
Fernando de Aquino Fonseca Neto é graduado em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e doutor em Economia pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é coordenador do Departamento Econômico do Banco Central no Recife, Membro do Conselho Federal de Economia – Cofecon e do Conselho Regional de Economia de Pernambuco – Corecon-PE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor está avaliando a atual crise econômica brasileira? A economia já dá sinais de recuperação ou ainda não?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – É uma crise que começou com a retração dos investimentos, em função da queda de sua rentabilidade, provocada pelas elevações no custo unitário do trabalho e pelo câmbio valorizado. Caso não tivesse ocorrido toda essa crise política, a crise teria sido muito mais suave e já estaria superada. O que tornou a crise tão intensa foram a incerteza e a baixa confiança decorrentes da crise política. Os agentes reduziram o consumo, em particular de bens duráveis, e os investimentos no setor real, aumentando o desemprego e aprofundando a crise.
Toda crise econômica traz o germe de sua superação. Isso ocorre porque a própria crise vai elevando o retorno dos investimentos, tanto pelo aumento de sua necessidade e, como decorrência, do preço que os agentes estão dispostos a pagar pelo produto, quanto pela queda em seus custos, em termos dos preços de aluguéis, mão de obra e equipamentos.
Os agentes também precisam confiar que o governo vá encaminhar adequadamente questões como a fiscal, de modo a proporcionar estabilidade de regras. Essas condições de retorno e confiança já parecem ter acumulado forças para que a economia comece a se recuperar. Indicadores de investimentos já sinalizam alguma melhora. Também os indicadores de confiança revelam melhoria, já bastante alta entre os empresários industriais, cujo valor, apurado pela Confederação Nacional da Indústria – CNI, alcança níveis do início de 2014.
IHU On-Line – O senhor tem afirmado que atribuir o atual déficit público à gestão do governo Dilma é uma falácia. Por que se trata de uma falácia e a que atribui o atual déficit público?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – Até o aprofundamento da crise política, a partir de 2015, as perdas de receitas e aumentos de despesas do governo federal não podem ser consideradas injustificáveis ou extraordinárias. As desonerações, concentradas no setor automobilístico, sustentaram o emprego na economia em geral devido ao alcance dos aumentos de vendas naquele setor sobre a ativação da maioria dos setores da economia, desde toda a cadeia de insumos até a que produz bens de consumo para os que trabalham nessas cadeias. Os aumentos no montante de benefícios previdenciários se inseriram na política de redução das desigualdades em um dos países de renda mais concentrada do planeta. Os gastos com crédito de longo prazo, através do BNDES, de fato poderiam ter sido mais eficientes, no sentido de colher melhores resultados de setores estratégicos para o desenvolvimento socioeconômico.
Dentre todos esses fatores, o mais importante são os seus efeitos na dívida pública em relação ao PIB, e esse indicador não apresentou tendência de crescimento até 2014. A partir de 2015, a retração da atividade econômica de que falei é que causará queda na arrecadação e no próprio PIB, levando a relação dívida pública — PIB a apresentar valores crescentes.
IHU On-Line – Como o Estado deve lidar com o atual déficit público? É possível revertê-lo? De que modo?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – A receita pública depende muito da atividade econômica, enquanto a despesa é muito engessada no curto prazo. Parte da reversão já virá naturalmente, como decorrência da retomada da atividade econômica. Do lado da despesa, folha de pessoal, benefícios previdenciários, programas sociais só podem ser alterados gradualmente ao longo do tempo, o que não significa que devam ser reduzidos ou crescer menos que o PIB. Os juros da dívida pública são exorbitantes, comprometendo uma parcela inaceitável da despesa pública. Deveriam ser reduzidos, pois não há motivos para serem mantidos em níveis muito maiores que os praticados em países em condições similares às do Brasil. Não existe essa situação de que seria a taxa mínima aceita pelo mercado para comprar os títulos públicos. No Brasil, a taxa básica de juros é estabelecida pelo Banco Central para compatibilizar a demanda no setor real com a capacidade produtiva da economia, mas um outro mix de instrumentos poderia viabilizar taxas bem menores.
Enfim, o governo deveria se empenhar em viabilizar menores níveis de taxas de juros. Alguns tributos específicos, como o imposto de renda sobre lucros e dividendos e a CPMF, também seriam recomendáveis. Mesmo se não viessem a ser necessários para reverter o déficit público, seriam salutares para incentivar o crescimento e a distribuição de renda.
IHU On-Line – É possível dar continuidade aos programas sociais e ao enfrentamento das desigualdades neste momento de crise econômica e de déficit nas contas públicas? Como vislumbra que essas políticas possam ser desenvolvidas nesta conjuntura?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – Plenamente possível e também desejável, desde que o governo aumente a tributação. Falando assim, parece uma ideia muito antipática, digna de forte rejeição. Ninguém gosta de pagar imposto e ainda se diz que o Brasil mantém carga tributária excessiva. Na verdade, para manterem um estado de bem-estar social que consideram satisfatório, muitos países têm carga tributária maior que a do Brasil.
Ainda assim, a carga tributária entre nós é muito mal distribuída. Os mais ricos que residem no Brasil pagam pouco imposto e é sobre eles que teríamos muito espaço para elevar a carga tributária. Recursos assim arrecadados seriam suficientes para manter o controle das contas públicas ao longo do tempo, os programas sociais e o enfrentamento das desigualdades e ainda promover medidas de incentivo ao desenvolvimento socioeconômico do país.
IHU On-Line – O que seria uma tributação adequada para a realidade brasileira?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – O aumento da tributação dos mais ricos, além de contribuir para a redução das desigualdades, é uma forma menos recessiva de arrecadação, uma vez que os menos ricos terão que reduzir uma parcela de seus gastos para pagar o aumento de impostos, enquanto os mais ricos poderiam retirar os recursos de suas poupanças, o que não reduziria a demanda agregada.
O imposto de renda sobre lucros e dividendos (ver a Carta Aberta à Presidência da República e ao Congresso Nacional) deixou de ser cobrado em muitos países do mundo na década de 90, na esteira da grande onda neoliberal, de Reagan e Thatcher. Atualmente, o único país da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE que não cobra tal imposto é a Estônia. O Brasil deixou de cobrá-lo em 1995 e seu retorno, com as módicas alíquotas de imposto de renda de pessoa física vigentes no Brasil, permitiria cobrir a maior parte do déficit fiscal em 2017, caso a economia venha a exibir moderado crescimento.
A CPMF também é uma ótima alternativa, apesar de vir sendo tão rejeitada na mídia. Na realidade, é um tributo que pode ser compensado para o trabalhador, como foi da vez passada, quando a CPSS era reduzida em montante equivalente à CPMF que incidia em até três salários mínimos da remuneração, ou seja, a CPMF era totalmente compensada para quem ganhasse até três salários mínimos, o que corresponde atualmente a mais de 70% dos trabalhadores formais. Os benefícios previdenciários ganhavam um bônus para compensar o tributo, a classe média pagava um montante reduzido e quem pagava a maior parte eram os que movimentavam grandes quantias no mercado financeiro. Também os que sonegavam outros tributos, dificilmente escapavam dela.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a possibilidade de fazer uma reforma previdenciária? Ela é de fato necessária? Sim ou não e por quê?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – Em termos estritos, “benefício previdenciário” é um rendimento destinado ao sustento dos que não são capazes de obtê-lo com o próprio trabalho ou capital. No Brasil, entretanto, tal benefício pode e deve ser entendido como mais do que isso. Em função das desigualdades e pobreza que prevalecem no país, os benefícios previdenciários são também uma forma de transferência de renda, uma espécie de imposto de renda negativo, que é amplamente apoiado, até por economistas como Milton Friedman, um dos pais do neoliberalismo.
Falar em déficit previdenciário no Brasil é desprezar nosso ordenamento jurídico. Afrontar a nossa Constituição. Por muito menos depuseram uma presidente da República eleita democraticamente. O que ocorre é que o constituinte criou um Orçamento da Seguridade Social, que abrange vários gastos sociais, sendo os de maior valor os benefícios previdenciários e os gastos do Ministério da Saúde, e várias fontes de financiamento, sendo as de maior valor a arrecadação previdenciária e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins, incidente sobre a receita bruta das empresas.
Aqueles que partem para comparar benefícios previdenciários com arrecadação previdenciária para mostrar déficit e necessidade de redução dos benefícios, além de estarem ignorando uma regra constitucional, estão contestando que um tributo sobre a receita bruta das empresas seja usado para financiá-los. Quando formos um país desenvolvido, deveremos discutir os impactos previdenciários da transição demográfica, do envelhecimento da população, como fazem os países desenvolvidos.
IHU On-Line – Com a conclusão do processo de impeachment, que mudanças vislumbra que poderão ser feitas em termos de ajuste fiscal e reorientação das políticas desenvolvidas pelo Estado?
Fernando de Aquino Fonseca Neto – Tão ou mais importante que toda essa discussão do curto prazo, de recuperação da atividade econômica e enfrentamento da desigualdade e pobreza, é focarmos no longo prazo. Num projeto de país. Infelizmente, essa discussão tem ficado à margem do que a mídia repercute. Muito me estranhou, na última campanha presidencial, a total ausência de discussões sobre o longo prazo.
A grande questão é se podemos alcançar a qualidade de vida presente em grande parte dos países desenvolvidos. Eu falo não apenas capacidade de consumo, mas também amenidades como segurança, mobilidade, controle da poluição e acesso à cultura. Alguns economistas e outros analistas acham que nunca alcançaremos, teremos que nos contentar em nos concentrar na produção de farelo de soja, minério de ferro e carnes in natura, com geração de empregos baixa e mal remunerada. Acho que devemos tentar chegar lá, ou perto.
O Prof. Paulo Gala, da FGV/SP, vem desenvolvendo e relatando pesquisas bastante interessantes sobre desenvolvimento que tratam o sistema econômico como uma rede. Sobre tal representação é aplicada uma técnica que vem se expandindo em várias áreas do conhecimento, devendo dominar as pesquisas empíricas em economia em alguns anos, chamada machine learning, em que programas utilizando computadores com alta capacidade de armazenamento e processamento identificam padrões de relacionamento entre informações, em bases de dados gigantescas, gerando muitas evidências sobre desenvolvimento de forma muito mais robusta do que com outras metodologias, como a econometria. Essas evidências apoiam antigas ideias da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, de industrialização e desenvolvimento tecnológico como a melhor forma de elevar a qualidade de vida de um país.
Nos termos dessas pesquisas de rede, o caminho seria elevar a complexidade produtiva do país. Essa complexidade é maior quanto mais diversificada for a produção e quanto mais bens o país produzir que poucos também consigam. Com essa estrutura produtiva seria gerada grande proporção de ocupações de alta produtividade, viabilizando alta remuneração, sustentável e genuína, que iria se disseminando na economia e reduzindo as desigualdades.
As medidas que favoreceriam essa elevação da complexidade produtiva iriam além de estabilidade de regras e investimento em educação e infraestrutura, requerendo um ativismo estatal maior, com uma política consistente de desenvolvimento científico e tecnológico, uma política industrial que complete as cadeias produtivas e consiga induzir ganhos de produtividade e uma política cambial que mantenha a taxa de câmbio em uma faixa que viabilize a produção interna de vários produtos de alto valor agregado.