Artigo – Inversão de papéis na economia globalizada

  • 30 de agosto de 2017
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“A nova ordem mundial não é explicada pelo
declínio dos Estados Unidos da América, mas
sim pela ascensão de todos os outros países”.
Fareed Zakaria

A ideologia caracterizou a disputa pela hegemonia mundial por quase toda a segunda metade do século XX: de um lado, o bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos, defendendo o sistema econômico capitalista e o regime político democrático; de outro, o bloco oriental, liderado pela União Soviética, defendendo o sistema econômico socialista e admitindo o comando centralizado do poder político.

Na referida disputa, que se tornou conhecida como Guerra Fria, cada superpotência procurava ampliar sua esfera de influência e, nesse sentido, a presença da China no bloco liderado pela URSS fazia com que a balança pendesse para esse lado, pelo menos em termos de alcance populacional.

Com o mundo assim dividido, acostumamo-nos a ver os Estados Unidos como paradigma da visão liberal, defendendo a propriedade privada dos meios de produção, a reduzida intervenção governamental, o exercício da livre iniciativa empresarial, o mercado caracterizado pela concorrência, e o lucro e o sistema de preços como principais orientadores das tomadas de decisão. Já a União Soviética, assim como a China, representavam o paradigma constituído pela coletivização dos meios de produção, pela plena intervenção governamental e pela existência de órgãos centrais de planificação responsáveis pelas decisões do que, como, quanto e para quem produzir.

Esse panorama se alterou a partir do final da década de 1980/início da de 1990, com a queda do Muro de Berlim, o fim do império soviético e as transformações verificadas nos países da chamada Cortina de Ferro.

Muitos analistas enxergaram nessa mudança a vitória definitiva do sistema liberal capitalista, visão consagrada por Francis Fukuyama num livro que se tornou best-seller mundial, O fim da história e o último homem.

Simultaneamente a essa implosão do império soviético o mundo testemunhava a ascensão da China, que despertava de mais de um século de letargia, período em que perdeu poder no mundo e na região asiática, sendo humilhada pelo Japão que havia se transformado na segunda potência econômica mundial poucos anos depois de ter saído arrasado da Segunda Guerra Mundial.

Assim, entramos no século XXI testemunhando uma mudança importante no plano das relações internacionais, com o fim do mundo bipolar que persistiu durante a Guerra Fria e sua substituição por uma nova configuração, multipolar, em que se destacava não apenas o extraordinário crescimento da China, mas também o avanço da participação dos países emergentes.

A grave crise econômico-financeira, que teve origem no sistema hipotecário norte-americano em 2007/2008 espalhando-se por todo o mundo e atingindo seu clímax em 2009, pode ser vista como um marco divisório.

Naquele ano de 2009, a China, a exemplo do que acontecia em todo o mundo, sofria os efeitos da grave crise econômico-financeira, considerada por muitos analistas a mais série crise desde a Grande Depressão dos anos 1930. Sendo assim, no ano de 2009, o crescimento do produto interno bruto (PIB) chinês ficou pelo segundo ano consecutivo na casa dos 9%, depois de cinco anos consecutivos com crescimento anual superior a 10%[1]. Em verdade, o crescimento chinês permaneceu em torno de 10% ao ano por três décadas, como pode ser visto no gráfico1, com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Gráfico 1
Crescimento Anual do PIB da China (%)

Depois de se recuperar em 2010, quando registrou novamente um crescimento de 10,4%, a China apresentou uma diminuição no seu ritmo de crescimento, passando a ostentar níveis de crescimento da ordem de 6 a 7% ao ano, naquilo que vem sendo chamado de “novo normal”.

Além de um sistema político fechado, controlado com mão de ferro pelo Partido Comunista, a China continuava dando sinais de uma abertura cada vez maior de sua economia, num processo iniciado em 1979 com Deng Xiaoping. Essa abertura, no entanto, também era rigidamente controlada pelo Partido Comunista, com estratégias, objetivos e metas definidos – e revistos – sistematicamente nos Planos Quinquenais. Ao longo dessa trajetória, não foram raras as ocasiões em que a China se viu às voltas com problemas com outros países ou com organismos internacionais, em especial a Organização Mundial do Comércio (OMC), por conta de intervenções oficiais consideradas ilegais por conferirem vantagens comercias aos produtos chineses no comércio internacional.

Em contrapartida, os Estados Unidos se apresentavam como verdadeiro paladino do livre comércio desde que o processo de globalização da economia mundial se intensificara nas décadas de 1980 e 1990. Nesse caso em particular, a posição norte-americana não era acompanhada pela União Europeia, que, não raras vezes, defendeu posições protecionistas, sobretudo no que se refere aos produtos agrícolas.

Essa dicotomia entre China e Estados Unidos não era observada apenas nos planos econômico e comercial, estendendo-se a outros setores sensíveis das relações internacionais como, por exemplo, os referentes às questões ambientais, em especial no que tange ao aquecimento global e ao controle das emissões de gases de efeito estufa.

Esse quadro, porém, vem mudando acentuadamente nos últimos anos, mudança que vem se tornando ainda mais clara com a chegada ao poder de Donald Trump.

No momento, há enorme expectativa no ar, principalmente após a divulgação da estratégia de política industrial aprovada em março último pelo governo chinês para tornar seu país autossuficiente numa série de importantes setores, até 2025.

Em artigo publicado no Estado de S. Paulo, o embaixador Rubens Barbosa afirma que “Embora o objetivo seja modernizar a indústria em geral, o plano indica dez setores prioritários: nova tecnologia avançada de informação; robótica e máquinas automatizadas; aeroespaço e equipamento aeronáutico; equipamento naval e navios de alta tecnologia; equipamento de transporte ferroviário moderno; veículos e equipamentos elétricos; equipamento de geração de energia; implementos agrícolas; novos materiais, biofármacos e produtos médicos avançados”.

Depois de ser retardatária nas três primeiras revoluções tecnológicas, essa ação tem, entre outros objetivos, o de situar a China na vanguarda da quarta revolução industrial. Essa intenção ficou evidente no comunicado do primeiro-ministro Li Keqiang, na 6.ª sessão plenária do Comitê Central do Partido Comunista. Na ocasião, Keqiang referiu-se a “alguns desdobramentos do 13.º plano quinquenal para a economia chinesa”. Uma das metas é estimular a ampliação das áreas de serviços e de alta tecnologia, que estão crescendo, mas não têm ainda peso suficiente para substituir os atuais (cada vez menos eficientes) motores do crescimento da economia chinesa: infraestrutura e construção civil. “Vamos acelerar a pesquisa e o desenvolvimento e a comercialização de novos materiais, inteligência artificial, biofarmacêutica, comunicação móvel e outras tecnologias, além de apoiar a criação de clusters industriais nessas áreas”, anunciou.

O que se constata, de fato, é que uma série de alterações vem se verificando no tabuleiro das relações internacionais desde o início deste novo século, como bem observado por He Yafei, ex-vice-ministro de Relações Exteriores da China em recente artigo publicado no jornal China Daily Latin America Weekly.

Entre as alterações apontadas por ele, destacam-se (i) o aumento da participação relativa dos países emergentes – liderados pela China – na produção e nas tomadas de decisão de interesse mundial (fato magistralmente analisado pelo jornalista Fareed Zakaria em O Mundo Pós-Americano); (ii) a consolidação da globalização e da ordem mundial multipolar; e (iii) a transição, em termos de governança global, de uma clara liderança ocidental para uma co-governança compartilhada pelo ocidente e pelo oriente.

Como sempre ocorre em mudanças desta envergadura, surgem diversas formas de resistência, principalmente por parte de quem está experimentando a redução de seu poder ou de sua influência.

É o que se tem observado por parte dos Estados Unidos, onde ainda é muito presente a ideia do excepcionalismo americano. E, de certa forma, se bem que em menor escala, também na Rússia (saudosa dos tempos da União Soviética como segunda maior potência mundial) e na própria União Europeia, cuja constituição está diretamente ligada à tentativa de manter – e quem sabe ampliar – sua esfera de influência.

Assim, o que temos observado nos anos mais recentes, principalmente após a crise de 2008/09, é a China dando firme suporte à globalização e à redução das barreiras protecionistas, enquanto muitos países ocidentais, entre os quais os Estados Unidos, se opondo francamente a isso.

A posição norte-americana tornou-se ainda mais nítida com a substituição, na presidência dos Estados Unidos, de Barack Obama por Donald Trump. Enquanto Obama era favorável ao Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês) e ao Acordo de Paris, assinado em 12 de dezembro de 2015, na 21ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP21), Trump reviu a posição dos Estados Unidos assim que assumiu o cargo de presidente. Sua posição, aliás, fica bem nítida no bordão “America First”.

A manutenção da diretriz isolacionista defendida por Trump para os Estados Unidos – coerente, sem dúvida, com seu discurso de campanha – pode até significar, pelo menos no curto prazo, alguns ganhos para a população norte-americana. Mas, como adverte He Yafei, pensando no bem-estar da humanidade no longo prazo, “apenas quando as nações cooperam umas com as outras é possível obter como saldo um processo ganha-ganha”.

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas

BARBOSA, Rubens. ‘Made in China em 2015’. O Estado de S. Paulo, 28 de março de 2017. Disponível em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,made-in-china-em-2025,70001716537

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

MAGNOTTA, Fernanda Petená. As ideias importam: o excepcionalismo norte-americano no alvorecer da superpotência. Curitiba: Appris, 2016.

SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução de Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.

TREVISAN, Cláudia. China: o renascimento do império. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.

YAFEI, He. New world order is the inevitable trend. China Daily Latin America Weekly, August 21-27, 2017, p. 12.

ZAKARIA, Fareed. O Mundo Pós-Americano. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


[1] De 1979 a 2008, o crescimento médio do país foi de 9,8% ao ano; de 2001 a 2007, foi de 10,5%.


Luiz Alberto Machado é economista e foi conselheiro federal por três mandatos.

 

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