Nota do Cofecon sobre a PEC de Reforma da Previdência
O Conselho Federal de Economia (Cofecon) é favorável ao debate sobre a sustentabilidade do sistema previdenciário e a mudanças visando adaptação à evolução demográfica em curso, aperfeiçoamento do sistema e correção de falhas. Mas essas medidas devem ser precedidas de amplo e efetivo debate na sociedade brasileira. Para tanto, defendemos a realização de audiências públicas nas diversas regiões do país, de modo que a discussão não fique circunscrita ao Congresso Nacional.
Posicionamo-nos em defesa da Previdência Social, pública, em seu atual regime de caráter contributivo e solidário e manifestamo-nos de forma crítica à proposta de reforma formulada pelo Governo Federal.
A Previdência Social começou a ser instituída no Brasil em 1923 (com a chamada Lei Elói Chaves), portanto há quase um século, e é inadmissível que se busque alterar esse sistema de forma tão profunda e sem uma ampla reflexão, pois afetará a vida de dezenas de milhões de brasileiros.
O pressuposto que justificaria a reforma, o chamado “déficit da Previdência”, é controverso. Estima-se déficit de R$ 180 bilhões para 2017. Entretanto, ignora que a Constituição Federal, em seu art. 195, prevê um sistema tripartite, com empregados, empregadores e governo contribuindo para custear a Seguridade Social, que inclui além da Previdência Social, a Saúde e a Assistência Social. A Seguridade Social, segundo a ANFIP (Associação Nacional dos Fiscais Previdenciários), seria superavitária em 2015 em R$ 20,1 bilhões, com receitas de R$ 704 bilhões e despesas de R$ 683,9 bilhões, desde que o governo não houvesse subtraído recursos a ela destinados.
A proposta do governo, de forma equivocada, foca nas despesas. Conforme estudo elaborado pelo DIEESE, a subtração de recursos da Seguridade Social supera R$ 123 bilhões anuais, compreendendo: aplicação da Desvinculação de Recursos da União (DRU) sobre recursos da Seguridade Social (R$ 61 bilhões); desoneração das exportações do agronegócio (R$ 5,3 bilhões); isenções previdenciárias para entidades filantrópicas (R$ 11 bilhões); sonegação mediante assalariamento sem carteira de trabalho (R$ 46 bilhões).
No XXV Simpósio Nacional dos Conselhos de Economia, realizado de 31 de agosto a 2 de setembro em Natal (RN) e que reuniu cerca de 200 economistas representando os 26 Conselhos Regionais de Economia, a “Carta de Natal” – documento aprovado por unanimidade no evento – destacou: “Caminha-se para uma proposta de Reforma Previdenciária que pode representar injustiças, sobretudo com a população mais pobre, ao se buscar elevar a idade mínima para aposentadoria ao patamar praticado em países com expectativa de vida bem superior à brasileira. Como sugerir que o trabalhador rural se aposente aos 65 anos se a expectativa de vida dessa população, no Norte-Nordeste é de 63 anos?”
O fato é que a proposta do governo veio mais draconiana que o esperado. Equiparam-se, para efeito de aposentadoria, as mulheres aos homens e os trabalhadores rurais aos urbanos; propõe-se a desvinculação do salário mínimo em diversas situações, como o Benefício da Prestação Continuada (BPC); eleva-se a comprovação de contribuição previdenciária de 15 para 25 anos e, o mais grave, para 49 anos de contribuição para se ter o direito ao benefício integral; e regras de transição. Adicionalmente, a proposta de reforma da previdência aumentará as desigualdades, ao reduzir o fluxo de transferências representado pelos benefícios previdenciários pagos aos trabalhadores do setor privado, uma vez que mais de 90% desses beneficiários são das classes C, D e E.
O Cofecon entende que correções precisam ser feitas no âmbito da Previdência Social, começando por deixar de reduzir sua receita com isenções e subtrações já mencionadas, e que mudanças nas condições de acesso e nos valores dos benefícios não atinjam os brasileiros mais pobres e vulneráveis, como a proposta do governo o faz.
CONSELHO FEDERAL DE ECONOMIA
COMENTÁRIOS SOBRE ASPECTOS PROPOSTOS PELA PEC 287
- Financiamento da Seguridade e da Previdência Social
Conforme estudo elaborado pelo DIEESE para as Centrais Sindicais, a subtração de recursos da Seguridade Social supera R$ 123 bilhões anuais, compreendendo: a) Aplicação da Desvinculação de Recursos da União (DRU) sobre recursos da Seguridade Social (R$ 61 bilhões); b) Desoneração das exportações do agronegócio (R$ 6,5 bilhões); c) Isenções previdenciárias excessivas para entidades filantrópicas (R$ 12,5 bilhões); d) Sonegação mediante assalariamento sem carteira de trabalho (R$ 46 bilhões).
Ainda sangrando a receita da Previdência, há o subsídio às micro e pequenas empresas (R$ 25 bilhões). Deve também ser lembrada a desastrosa medida adotada no Governo Dilma de desonerar as contribuições previdenciárias sobre as folhas de pagamento das empresas, o que em 2015 subtraiu R$ 22 bilhões da Previdência Social, só parcialmente repostos pelo Tesouro. Somando tudo, são 173 bilhões anuais de renúncia fiscal afetando a Previdência Social.
Por fim, ressaltamos o caráter conjuntural da queda da arrecadação previdenciária, decorrente da forte queda do nível de emprego em 2015 e 2016. Tão logo a economia volte a crescer, a receita previdenciária de trabalhadores urbanos deverá retomar o patamar de 2014.
- Déficit da Previdência Social
Reafirmamos que a alegação do governo de que a Previdência Social apresenta enorme déficit é falsa. Ocorre que, propositalmente, o governo omite que a Constituição Federal, em seu art. 195, previu um sistema tripartite, com empregados, empregadores e governo contribuindo para custear a Seguridade Social, que inclui a Previdência Social. A Seguridade Social foi superavitária em 2015 em R$ 20,1 bilhões, com receitas de R$ 704 bilhões e despesas de R$ 683,9 bilhões, conforme atestam os números da Associação Nacional dos Fiscais Previdenciários – ANFIP (www.anfip.org.br), mesmo com a sangria de seus recursos perpetrada pelo próprio governo. É fato também que o recolhimento de contribuições entre os trabalhadores urbanos (R$ 360 bilhões em 2015) superou amplamente os benefícios a eles pagos, apresentando déficit em 2016 em função da perda de contribuições devido à queda acentuada no número de empregos com carteira de trabalho.
- Instituição da idade mínima de 65 anos com pelo menos 25 anos de contribuição
A regra atual prevê, para trabalhadores do setor privado no meio urbano, a aposentadoria por idade (65 anos para homens e 60 anos para mulheres) com pelo menos 15 anos de contribuição ou a aposentadoria por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) sem idade mínima definida. A proposta estabelece a idade mínima de 65 anos para todos, com o mínimo de 25 anos de contribuição.
O Cofecon entende que a regra 95 (soma de idade e anos de contribuição para homens) e 85 (soma de idade e anos de contribuição para mulheres) já é bastante adequada para coibir as aposentadorias precoces, pois para se aposentar aos 55 anos, um homem teria que começar a trabalhar e contribuir aos quinze anos de idade, contribuindo por 40 anos. Poderia ser acelerada a ampliação gradativa para 100/90, por exemplo.
- Instituição da igualdade entre homens e mulheres
O Cofecon entende que não se deve dar tratamento igual a situações diferentes. As condições de acesso e permanência das mulheres no mercado de trabalho são historicamente mais adversas que as dos homens. Em função da exclusividade da maternidade, de cuidados com parentes idosos e de maior responsabilidade com o lar, as mulheres adiam a entrada no mercado de trabalho, se ausentam dele com maior frequência e têm menos tempo para cumprir jornadas de trabalho, o que resulta em menores salários. A concessão da aposentadoria com menos anos de idade ou de contribuição deve ser a compensação por tais adversidades.
- Instituição da igualdade entre trabalhadores urbanos e rurais
Outra situação típica de imputar tratamento igual a situações desiguais. Os trabalhadores rurais historicamente começam a trabalhar mais precocemente que os trabalhadores urbanos e, no meio rural, o assalariamento abrange uma parcela ínfima dos trabalhadores, predominando os agricultores familiares, parceiros, meeiros e posseiros. De outro lado, os trabalhadores no campo têm menos expectativa de vida, em decorrência do baixo acesso à saneamento básico (água potável e esgotamento sanitário) e do acesso mais difícil às instalações hospitalares. Deve-se assinalar também que a baixa renda monetária dos trabalhadores rurais e a inexistência do empregador impede o recolhimento mais substantivo de contribuições no meio.
Alega-se que as aposentadorias rurais representaram um déficit de R$ 100 bilhões em 2016. Mas por suas especificidades, a aposentadoria dos trabalhadores e trabalhadoras rurais deve ser vista como programa social e continuar sendo concedida aos 60 e 55 anos.
Outro aspecto que não deve ser ignorado é a enorme contribuição da ampliação da aposentadoria rural para a redução da pobreza no Brasil e para a queda na péssima distribuição social e espacial da renda.
- Impacto na desigualdade regional
Mais uma situação que impõe tratamento diferenciado. O Brasil ainda apresenta acentuadas disparidades regionais. Nas regiões Norte e Nordeste, a taxa de desemprego, o grau de informalidade no mercado de trabalho e a menor expectativa de vida (a diferença chega a 10 anos entre o estado mais rico e o mais pobre da federação) determinam a possibilidade de se estabelecer parâmetros distintos para a concessão da aposentadoria.
- Impacto na economia das regiões mais pobres
A Reforma da Previdência proposta, que reduz de forma substantiva os valores pagos a aposentados e pensionistas, acarretará em expressivo impacto na economia das regiões mais pobres do Brasil, concorrendo para a acentuação da desigualdade na distribuição espacial da renda. Já foi aqui assinalado a enorme contribuição da aposentadoria rural para a redução da pobreza no Brasil e para a queda na péssima distribuição social e espacial da renda.
Estudo realizado pelo jornal Valor Econômico mostra que em nada menos que 4.126 municípios brasileiros (74,1% do total), os benefícios pagos pela Previdência Social superam os recursos oriundos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), principal fonte de recursos dos pequenos municípios brasileiros. O estudo mostra ainda que em 860 municípios brasileiros (localizados essencialmente nas Regiões Norte e Nordeste), os benefícios pagos pelo INSS são superiores a 20% do PIB local.
- Mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC)
O BPC, benefício equivalente a 1 Salário Mínimo, pago aos deficientes de qualquer idade e aos idosos com 65 anos ou mais que pertencem a famílias com rendimento familiar per capita inferior a ¼ do Salário Mínimo e que não se aposentaram por idade por não conseguirem comprovar 15 anos de contribuição (contemplam 4,5 milhões de brasileiros), também terá as regras de acesso modificadas pela proposta do governo. A cada dois anos, a idade para acesso ao benefício subirá um ano, de forma que em 10 anos, a idade mínima para acessar o benefício será de 70 anos. Ademais, teriam os benefícios descolados do salário Mínimo. Trata-se de uma proposta totalmente injusta, que penaliza a população mais pobre e sofrida do país. O Cofecon defende que as atuais condições não se alterem, pois são pessoas que não tiveram acesso a um maior grau de educação escolar e, consequentemente, não tiveram qualificação profissional, trabalhando quase sempre na informalidade, daí a dificuldade em comprovar contribuição previdenciária. Ademais, os beneficiários idosos do BPC, em sua quase totalidade residentes em favelas e aglomerados em situação precária nas periferias das grandes cidades, sem acesso à saneamento urbano e à tratamento de saúde adequado, tem expectativa de vida que raramente ultrapassam os 70 anos de idade.
- Unificação do Regime Geral com o Regime Próprio
O Cofecon entende que a proposta de adoção de um único regime – para trabalhadores do setor privado e do serviço público – pode e deve ser debatida. De fato, as diferenças no valor e no acesso ao benefício são expressivas. Devem ser estabelecidas, contudo, regras para promover a transição e unificação dos dois sistemas.
- Mudanças nas aposentadorias especiais
A proposta do governo deixa de fora da Reforma da Previdência os militares das Forças Armadas, assim com os servidores estaduais das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros. O argumento é de que o direito de se aposentarem mais cedo representa um atrativo para a profissão. No vácuo, já pleiteiam o mesmo tratamento os servidores da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, das Polícias Civis e os agentes penitenciários. Mas os professores do ensino fundamental e médio da rede pública perderão o mesmo direito. A proposta por si só expressa o desprezo que o país dispensa à educação de nossos milhões de jovens e a prioridade dada aos que fazem a defesa do patrimônio.
- Mudanças no valor pago nas pensões por morte
A Previdência Social paga 7,4 milhões de pensões por morte, com dispêndio de R$ 92 bilhões em 2015. Nada menos que 55,1% das pensões são de 1 Salário Mínimo (SM). A proposta do governo, além da desvinculação ao SM, propõe pagamento de 50% da pensão, acrescido de 10% do valor para cada dependente. Dessa forma, uma viúva com dois filhos receberia apenas 80% do valor da pensão. Só receberia 100% se tiver 4 ou mais filhos. Deve-se observar que 35,3% das pensões tem benefícios entre 1 e 3 SM e apenas 9,6% tem valor superior a 3 SM.
- Exigência de 49 anos de contribuição para se auferir o benefício integral
A proposta do governo é draconiana, mas na prática, inócua e desestimulante para manter o trabalhador na ativa. Para se aposentar com o benefício integral, o trabalhador terá de contribuir por 49 anos. Isso significa que para ter benefício integral aos 65 anos, terá que começar a trabalhar aos 16 anos e contribuir ininterruptamente desde então, situação absolutamente atípica em nosso país. Num exemplo mais provável, de uma pessoa que comece a trabalhar com 22 anos e contribua em 80% dos 43 anos trabalhados até completar 65 anos de idade (perfazendo 34 anos de contribuição), ela terá direito a 85% do valor do benefício. Para receber o benefício integral, teria que trabalhar mais 15 anos, até os 80 anos. Se a expectativa de sobrevida é de mais 20 anos, como abdicar de receber 85% do benefício por 20 anos para optar por receber 100% por 5 anos? Na prática, a proposta do governo estabelece a idade mínima e, por tabela, a idade máxima para aposentadoria.
Deve ser ainda mencionado que o cálculo para definição do benefício, que atualmente computa os salários de contribuição nos últimos 15 anos, pela proposta do governo prevê a média todos os salários recebidos ao longo da vida, significando que praticamente ninguém receberá 100% do benefício porque no início da carreira o trabalhador não deve ter contribuído com o teto do salário de contribuição.
- Regras de Transição
São 39,8 milhões os brasileiros que se enquadrarão nas regras de transição (homens com mais de 50 anos e mulheres com mais de 45 anos). De outro lado são 101,4 milhões os homens e mulheres que, embora muitos deles estejamhá bastante tempo no mercado de trabalho, não terão direito à regra de transição, devendo ser enquadrados integralmente nas novas condições para a aposentadoria. Ocorre que a proposta não prevê uma transição escalonada, mas abrupta, o que cria situações absolutamente injustas. Um homem com 50 anos de idade e 30 de contribuição teria que trabalhar (e contribuir) mais 7,5 anos (50% do tempo que falta para completar 65 anos). Já outro homem com 49,5 anos na data de vigência da reforma teria que trabalhar mais 15,5 anos até completar 65 anos de idade. Não há a mínima razoabilidade na proposta do governo.
- Comparação do Brasil com outros países
Não faz sentido comparar nosso sistema previdenciário com o de países ricos e estabelecer os mesmos parâmetros. Nesses países, cujo sistema também é tripartite, portanto, com a participação do governo, a expectativa de vida é muito maior que a do brasileiro, em alguns casos, superando 10 anos. Ademais, nos países ricos, os benefícios, quando concedidos pelo Estado, se justificariam apenas para os trabalhadores que não apresentam suficiente capacidade laboral para assegurar seu próprio sustento. No Brasil, mesmo indivíduos com capacidade laboral perdem a empregabilidade muito cedo e, para os que ainda não perderam, é aceitável que continuem trabalhando após começar a receber benefício previdenciário, como um bônus a reduzir a desigualdade num dos países mais desiguais do mundo.
- Risco de progressiva privatização da Previdência Social
O forte endurecimento nas regras de acesso à Previdência e a redução dos benefícios concedidos certamente abrirão maior espaço para a expansão da Previdência privada no país e o risco de progressiva privatização do sistema. O exemplo do que ocorreu no Chile deve nos servir de alerta. Criou-se um sistema de gestão privada e hoje a taxa de reposição (relação entre o benefício recebido e a média salarial na ativa) é de parcos 38%, no México é ainda menor, de 28%, enquanto no Brasil é de 82%. Não à toa, a reivindicação dos chilenos é a adoção do modelo praticado no Brasil.