Sobre tributação global
Artigo de opinião por Paulo Dantas da Costa, presidente do Conselho Federal de Economia
Está sempre no imaginário das lideranças internacionais propostas que possibilitem a gestão de recursos para solução dos mais graves problemas dos países periféricos, onde ocorrem as mais graves deformações sociais. Assim é que em setembro de 2015, em Nova York, os chefes de 193 Estados-Membros da ONU aprovaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, composta de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) com os quais imaginaram resolver graves problemas até o ano 2030, a exemplo do “Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares” e do “Objetivo 2. Acabar com a forme, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”. No projeto, o aporte de 0,7% do PIB das grandes nações, mais 0,15 a 0,20% dos países em desenvolvimento seria suficiente para o financiamento dos objetivos.
Em junho de 2020, os economistas Joseph Stiglitz, Tomas Piketty, José Antonio Ocampo e a economista Jayati Ghosh, diante da perda de arrecadação dos governos em razão da crise do Covid-19, imaginaram o uso de mecanismos tributários mundiais que possam alcançar as grandes corporações e oligopólios e as grandes plataformas e provedores digitais que atuam na Internet, no contexto de um movimento por eles denominado de reforma tributária global.
Em outro momento, junho de 2021, os ministros de finanças e presidentes dos bancos centrais do G7, grupo dos sete mais ricos países do mundo, exceto China e Índia, propuseram a criação de um imposto corporativo global com alíquota de 15%, a incidir sobre o lucro das grandes multinacionais, particularmente das gigantes digitais, iniciativa rotulada como uma ampla reforma tributária global adaptada à era digital. Neste fevereiro de 2023, o ministro da economia da França, Bruno Le Maire, deu conta que as negociações em andamento no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para aplicação dessa hipótese de tributação internacional estava “bloqueada devido à oposição de vários países, incluindo Estados Unidos, Arábia Saudita e Índia”.
Na realidade, algumas deformações comprometem a montagem de qualquer uma das três hipóteses imaginadas. Em primeiro lugar porque estão fundadas no uso de recursos ordinários internos, inclusive de origem tributária, no trato de uma questão que tem características essencialmente internacionais. Depois, porque a sua aplicabilidade dependente da generosidade dos dirigentes nacionais, que estão sujeitos aos seus respectivos orçamentos também nacionais
Em razão disso, resta a muito promissora possibilidade da implantação de um tributo internacional com boa base de incidência (volume de negócios), com características essencialmente internacionais, uma vez que o fato gerador a ele relacionado envolve agentes internacionais residentes ou estabelecidos em países diferentes, mesmo que eventuais operações sejam realizadas na mesmo praça. A hipótese que se encaixa nessa configuração é um tributo internacional sobre todas as transações cambiais, a ser arrecadado em âmbito global, fora dos orçamentos nacionais.
Os que estudam a matéria, desde James Tobin, no começo dos anos 70, com a sua tax Tobin, já têm delineado o conjunto de elementos que configurariam um tributo sobre transações cambiais: hipótese de incidência, fato gerador, sujeito passivo, alíquota, base de cálculo, local da operação, o lançamento e a arrecadação, a exceção, apenas, do sujeito ativo da potencial relação fisco/contribuinte, que pode ser definido por meio de importantíssimo tratado envolvendo todos os países, que busque, além disso, definir parâmetros para uma nova governança internacional.
Num momento como o atual, em que o mundo está tomado por ideias neoliberais, parece inoportuno/contraditório apelar para um modelo de governança. O fato é, contudo, que a humanidade carece de práticas que possibilitem o bem-estar ou até a sobrevivência de todos. Nesse particular, sim, a alternativa tributária é uma excelente opção para promover os ajustes sociais.
A indicada nova governança mundial poderia atuar na atividade financeira internacional buscando tributar o extraordinário fluxo financeiro global (hipótese de incidência), cujo fato gerador seria a realização de operações cambiais internacionais, tendo como sujeito passivo (o contribuinte) apenas o remetente do recurso. A base de cálculo seria o valor de cada operação, sobre o qual incidiria uma alíquota de 0,1% (muito se fala em alíquotas de 0,01% a 1%). O local da operação é sempre o país do pagador.
O lançamento e a arrecadação ficariam a cargo do necessário sujeito ativo que, no contexto de uma nova Administração Tributária Mundial, poderia ser, sugestivamente, a própria ONU, por meio de um Alto Comissariado, a ser criado para essa função, presumindo-se, em qualquer hipótese, a pactuação de tratado por todos os países para tal fim.
A tributação aqui proposta não afetaria a livre movimentação de capitais, gerando arrecadação completamente fora dos orçamentos nacionais, uma vez que as operações têm características puramente internacionais. O sujeito ativo necessitaria da instalação de uma robusta plataforma de pagamentos eletrônicos, a exemplo da CLS Bank, ou até pela incorporação desta.
Além dos fins econômicos, a adoção de um mecanismo tributário internacional poderia contribuir significativamente no enfrentamento ao movimento de dinheiro sujo no mundo e o consequente esvaziamento dos paraísos fiscais, favorecendo, ainda, no combate à guerra fiscal, que existe entre países da Europa, na disputa por capitais financeiros em seus territórios.
A proposta é de que todas as operações cambiais sejam alcançadas pela tributação, inclusive as realizadas por bancos centrais.
O valor estimado para as poupanças internacionais é da ordem de US$ 550 trilhões, o que representa 5,4 vezes o valor do PIB mundial, estimado pelo FMI em US$ 101 trilhões para o ano de 2022. Nesse contexto, o BIS – Banco de Compensações Internacionais informa que um volume diário de operações cambiais da ordem de US$ 7,5 trilhões diários (valor médio das operações ocorridas em abril/2022), valor considerado modesto por alguns, a uma alíquota de 0,1%, resultaria numa arrecadação diária de US$ 7,5 bilhões, ou US$ 1,875 trilhões anuais, em 250 dias úteis, a ser aplicado pelo sujeito ativo nas nações mais pobres do mundo em ações nas áreas da educação, saúde, habitação, saneamento, questões climáticas e, principalmente, no combate à fome e à miséria.
O fato é que a intensa internacionalização das relações econômicas resultou na criação de um ambiente propício para adoção da ideia. Além do que é fundamental uma resposta objetiva para consecução dos Objetivos 1. Acabar com a pobreza até 2030 e 2. Acabar com a fome até 2030, que foram pactuados por 193 chefes de Estados-Membros da ONU no ano de 2015, como citado inicialmente neste texto.